Título: Brasil deve usar arsenal contra a China
Autor: Landim, Raquel
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/10/2010, Economia, p. B8

O Brasil tem de utilizar um "arsenal" de medidas para se defender do yuan desvalorizado. A afirmação não é choradeira de empresário prejudicado pela concorrência da China, mas o diagnóstico de uma ex-funcionária do Itamaraty, a economista Vera Thorstensen, que por 15 anos foi a principal assessora econômica da missão brasileira na Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra.

Ela já identificou as armas à disposição do País: tarifas contra dumping (que é vender abaixo do preço de custo), salvaguardas (taxas que protegem contra invasão de importações), barreiras técnicas e até uma lei do presidente Juscelino Kubitschek que permite ao Brasil elevar as tarifas de importação contra países que utilizem o câmbio como subsídio.

"O câmbio chinês manipula os preços. É um subsídio deslavado", disse Vera ao Estado. A especialista afirma que a política cambial do gigante ameaça a existência da OMC. "A China usou as regras da OMC para se tornar a maior exportadora mundial e agora está minando os alicerces da organização."

Com 30 anos de experiência em comércio internacional, Vera voltou ao Brasil para criar o Centro de Comércio Global e Investimentos (CCGI) na FGV. O objetivo é melhorar a qualidade técnica do País nessa área.

Existe uma guerra cambial em curso no mundo?

Não só existe uma guerra cambial, como estamos em uma guerra comercial. A China entrou na OMC em 2001 e pagou caro - cortando tarifas de importação e alterando leis - porque precisava das regras multilaterais para se proteger contra a discriminação dos outros países. Desde 2008, os chineses desvalorizaram artificialmente sua moeda. A China é membro da OMC e com essa política descumpre as regras e mina os alicerces da organização. É um subsídio deslavado à exportação. Além disso, o yuan desvalorizado cria uma tarifa extra ao redor da China, que protege seu mercado interno. Daí é possível entender porque a exportação do Brasil para a China é apenas soja e minério. Por que nenhum país denuncia isso? O que está por trás desse silêncio? Não denunciam porque suas empresas têm investimentos na China.

Por que a política cambial chinesa mina os alicerces da OMC?

Quando um país pratica uma desvalorização por mais de dois anos, força os países em volta a fazerem a mesma coisa. Hoje temos todo um bloco na Ásia com moeda desvalorizada. No momento em que a China desvaloriza sua moeda em 25% por um bom tempo, torna inútil o sistema da OMC. Há 10 anos estamos discutindo baixar ou não as tarifas de importação em 1% a 2%. A negociação de tarifa torna-se ridícula diante da desvalorização cambial da China.

Taxa de câmbio é competência da OMC ou do FMI?

Quando o Gatt (sigla em inglês para Acordo Geral de Tarifas e Comércio, que antecedeu a OMC) foi negociado, ficou decidido que taxa de câmbio e balança de pagamentos eram assuntos do Fundo Monetário Internacional, que a OMC cuidaria de comércio, e o Banco Mundial de crédito. Dizer se uma moeda está ou não desvalorizada é competência do FMI. Agora, o caso da China está desvirtuando o comércio. Se nada ocorrer na reunião do G-20 em novembro, os americanos vão ser forçados a aplicar uma tarifa anti-subsídio contra a China. E os chineses já disseram que vão recorrer à OMC. Logo, o assunto mais delicado do mundo de hoje estará nos tribunais da OMC.

A OMC tem mecanismos para lidar com isso?

Sim e sem mexer em nada nos seus acordos. Em primeiro lugar, tem um artigo do velho Gatt que diz que nenhum país pode usar o câmbio para frustrar os objetivos do acordo, que é liberalizar o comércio. O FMI já disse que a China está manipulando substancialmente sua moeda. Em segundo lugar, é proibido subsidiar a exportação. É claro que câmbio desvalorizado é um subsídio à economia como um todo, mas é uma questão de bons advogados provarem que afetam empresas 100% exportadoras. Um terceiro caminho é a valoração aduaneira: um país pode reajustar suas tarifas para compensar distorções.

A Câmara dos Deputados dos EUA aprovou um aumento de tarifas contra a China para compensar o yuan desvalorizado. Se passar no Senado, pode ser o pontapé de uma guerra comercial como a de 1930?

Não deve chegar a tanto, porque os países hoje são espertos. Ninguém vai chegar a 1930 e fechar as fronteiras. Hoje tudo é negociação.

O Brasil também deveria reagir ao yuan desvalorizado?

Tenho acompanhado vários estudos sobre a competitividade do Brasil em relação à China e estou assustadíssima. O custo do quilo de uma máquina chinesa é um terço da brasileira. A desindustrialização é evidente. Então o que a indústria brasileira pode fazer? Primeiro, pedir antidumping provisório, que pode ser concedido em três meses. Segundo, pedir salvaguarda especial contra a China. Quando a China entrou na OMC, foi decidido que os países poderiam, até 2013, usar uma salvaguarda especial se ocorresse um importação excessiva. Essa salvaguarda é mais simples de aplicar, mas até agora só estão em vigor quatro em todo o mundo. A China considera a salvaguarda especial injusta e deixou claro que retaliaria o país que a utilizasse. No Brasil, teve um discussão enorme e optaram por só aplicar antidumping. Está na hora de retomar isso. Nossas pesquisas encontraram ainda uma lei, do ex-presidente Juscelino Kubitschek. A lei de JK diz que "poderá ser alterada a alíquota relativa ao produto de um país que desvalorizar sua moeda ou conceder subsídio à exportação". É exatamente o caso da China. Outra alternativa é usar barreiras técnicas e exigir que todo produto importado da China seja certificado. Deveríamos fazer um arsenal de medidas.

A sra. não fica preocupada com a retaliação? As exportações brasileiras são muito dependentes das vendas de soja e minério de ferro para a China.

Tudo é negociação política. O fato é que o setor industrial tem direitos. O que nós queremos é pressão.

Qual seria o impacto dessa ofensiva no relacionamento bilateral entre Brasil e China?

O que eu quero é abrir um espaço especial de negociação. Não existe guerra de fato hoje. São guerras verbais. A questão é dizer ao governo chinês: tenho bons argumentos, tenho razão de reclamar, vamos negociar.

Qual é sua expectativa em relação à próxima reunião do G-20?

É preciso subir o tom contra a China. O discurso chinês de que não vai mexer no yuan porque destruiria a sua economia, não pode mais funcionar.