Título: Palavra de Dilma
Autor: Salomon, Marta
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/11/2010, Economia, p. B3

A presidente eleita Dilma Rousseff terá de renegar o lulismo, se quiser cumprir os compromissos do primeiro discurso depois da vitória, como o respeito à liberdade dos meios de comunicação e a seriedade fiscal. Prometeu "valorizar a democracia em toda sua dimensão, desde o direito de opinião e expressão até os direitos essenciais da alimentação, do emprego e da renda, da moradia digna e da paz". "Zelarei", acrescentou, "pela mais ampla e irrestrita liberdade de imprensa." Voltou a esse ponto quase no fim, mencionando as críticas do jornalismo livre como "essenciais aos governos democráticos".

Mais de uma vez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou limitar os meios de comunicação, apoiando ou propondo projetos de "controle social", um nome cínico para a censura. A apresentação do impropriamente chamado Decreto dos Direitos Humanos foi uma das tentativas mais claras. Além disso, um dos grandes eventos da campanha petista foi um ato contra a liberdade de imprensa promovido por gente favorável ao tal controle.

Para cumprir a promessa, a futura chefe de governo precisará decepcionar esses companheiros. Estará mesmo inclinada a governar num ambiente de livre informação e de crítica? O criador de sua candidatura só não enquadrou os meios de comunicação porque houve resistência. Mas nunca deixou de aplaudir os companheiros Chávez, Kirchner e Ahmadinejad, escrachados inimigos da imprensa livre.

Se os meios de informação puderem noticiar e criticar, haverá alguma resistência a desmandos. Será talvez a única fiscalização, porque a oposição partidária será provavelmente mais inepta do que foi no segundo mandato do presidente Lula e na campanha eleitoral.

Com pouca resistência no Congresso e pressionada pelas demandas do PMDB e das alas mais vorazes do PT, a presidente Dilma Rousseff precisará de muita disposição e muita firmeza para seguir as linhas anunciadas no discurso - controlar e melhorar o gasto público, promover a meritocracia, respeitar os contratos, aliviar a carga tributária e apoiar a autonomia das agências de regulação, entre outros itens.

Empresários apostam na influência do deputado Antonio Palocci como fator de moderação e de bom senso na administração federal. O pronunciamento da presidente eleita, no domingo à noite, reflete de forma inconfundível os conselhos do deputado e ex-ministro da Fazenda. Mas outras figuras e grupos do PT disputam um papel na definição das linhas de governo. Além disso, o presidente Lula prometeu, mais de uma vez, interferir na administração de sua sucessora. Enfim, os próprios empresários frequentemente pressionam as autoridades para obter benefícios nem sempre justificáveis, como barreiras protecionistas, câmbio ajustado a seus interesses, juros muito inferiores aos defendidos pelo Banco Central e subsídios generosos, normalmente custeados pelo Tesouro.

Todas essas pressões são incompatíveis com o chamado tripé da estabilidade - as metas de inflação, o câmbio flutuante e o superávit primário suficiente para manter a dívida pública sob controle e, se possível, declinante como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB). Governar com alguma seriedade implicará administrar essas pressões e limitar seus efeitos.

Uma gestão responsável incluirá a reconversão das empresas controladas pelo Tesouro em companhias do Estado, não do governo. Será uma das tarefas mais complicadas, por causa da vocação aparelhadora do PT e do poder de extorsão dos partidos aliados.

A presidente herdará contas públicas em condição preocupante, mal disfarçada neste ano por meio de artifícios contábeis. Seu primeiro teste será negociar o salário mínimo, levando em conta as consequências para as finanças do governo. Encontrará também um déficit em rápida expansão na conta corrente do balanço de pagamentos, causado em parte pela crise externa e em parte pelas desvantagens competitivas do País. Impedir o agravamento desses problemas será uma das principais tarefas de 2011.

Terá de enfrentar, ao mesmo tempo, os investimentos para a Copa do Mundo. Grande parte das despesas caberá ao governo federal ou será financiada - sem grande perspectiva de restituição - pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social. Terá de combinar competência, austeridade e coragem para decisões politicamente difíceis. Por enquanto, há um abismo entre as promessas do primeiro discurso e as condições objetivas de governo.

JORNALISTA