Título: Vaticano relativiza afirmações do papa sobre uso de preservativo; ONU elogia
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/11/2010, Vida, p. A16

Religião. Um dia depois de declarações de Bento XVI que serão publicadas em livro apontarem uma mudança de posição do Vaticano em relação ao uso de camisinha para conter a aids, porta-voz da Santa Sé adverte que doutrina da Igreja sobre o tema não mudou

Um dia após o papa Bento XVI afirmar que, em certos casos, o uso de preservativos é autorizado, o Vaticano assegurou ontem que as declarações de Bento XVI não são "uma mudança revolucionária" na doutrina da Igreja, e sim uma "visão compreensiva" para conduzir a humanidade "rumo ao exercício responsável da sexualidade". Ainda assim, a ONU saudou o comentário do papa como "um passo significativo" na luta contra a aids.

As afirmações de Bento XVI sobre o uso do preservativo fazem parte de uma série de temas que o papa abordou em entrevistas ao escritor alemão Peter Seewald para o livro A luz do mundo, O papa, a Igreja e os sinais dos tempos. Uma conversa com o Santo Padre Bento XVI (Libreria Editrice Vaticana). A obra, que será lançada amanhã, teve trechos antecipados no sábado pelo jornal católico L"Osservatore Romano.

Na entrevista a Seewald, Bento XVI dá como exemplo de uso justificável do preservativo as relações que envolvam prostituição. "É o primeiro ato de responsabilidade para desenvolver novamente o conhecimento do fato de que nem tudo é permitido e não se pode fazer tudo aquilo que se deseja", diz o papa, referindo-se ao caso hipotético de uma prostituta. Ele adverte, porém que "concentrar-se somente no preservativo significa banalizar a sexualidade". Para ele, as pessoas não veem mais nela nenhuma expressão de amor, mas uma espécie de droga.

Ontem, diante da repercussão mundial dos comentários de Bento XVI, o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, esclareceu que não há nada de revolucionário no reconhecimento de Bento XVI de que o uso de preservativo seja um ato de responsabilidade em situações extremas. Lombardi insistiu que a Igreja não considera o uso de preservativos como uma "solução moral" para frear a epidemia da aids: "O papa não justifica moralmente o exercício desordenado da sexualidade, mas considera que o uso de profilático para diminuir o risco de contágio da aids é um primeiro ato de responsabilidade para uma sexualidade mais humana."

Ao mesmo tempo, pessoas ligadas ao pontífice tentaram minimizar o alcance das declarações. "A doutrina católica não muda, o uso do preservativo está proibido", afirmou Giovanni Maria Vian, editor do L""Osservatore Romano. "O papa referiu-se a um ato de caridade e não à mudança da doutrina", disse o escritor católico Vittorio Messori.

Alento. Outros especialistas, porém, veem uma posição inédita do Vaticano desde 1968, com a famosa encíclica Humanae Vitae, do papa Paulo VI - que proíbe os católicos de usarem preservativos e outros métodos artificiais de contracepção. Para o historiador italiano Alberto Melloni, "Bento XVI sem dúvida abriu uma fenda na proibição do uso de preservativos que terá consequências". Para Marco Politi - um dos mais respeitados vaticanistas -, o papa "consentiu com cautela" o uso da camisinha e entendeu que "demonizar" o preservativo era "insustentável do ponto de vista científico, teológico e moral".

Os ativistas anti-aids, porém, veem avanços da Igreja em relação ao uso do preservativo. "A declaração reconhece que um comportamento sexual responsável e o uso de preservativos têm papel importante na prevenção do HIV", disse Michael Sidibe, diretor executivo do programa das Nações Unidas contra o HIV/Aids (UNAids). Segundo a Unaids, 80% das transmissões da doença - que afeta 33 milhões de pessoas no mundo inteiro - ocorrem por relações sexuais. Desde sua descoberta, 60 milhões de pessoas foram infectadas e 30 milhões morreram.

Anel. O papa Bento XVI celebrou ontem, na Basílica de São Pedro, o rito de concessão do anel cardinalício aos 24 novos cardeais, ordenados no terceiro consistório de seu pontificado. Na cerimônia foi entregue o segundo símbolo do cardinalato - o primeiro, no sábado, foi o capelo. Entre os novos cardeais está o brasileiro dom Raymundo Damasceno Assis, de 73 anos, arcebispo de Aparecida. / COM AFP E AP

TRECHOS DO LIVRO

Sexualidade

"Concentrar-se apenas no preservativo equivale a banalizar a sexualidade, e é justamente esta banalização o motivo de tantas pessoas não enxergarem na sexualidade uma expressão do amor, e sim uma espécie de droga, que aplicam a si mesmas."

Preservativo

"Pode haver certos casos em que o uso do preservativo se justifique, por exemplo, quando uma prostituta usa um profilático. Este pode ser o primeiro passo no sentido de uma moralização, um primeiro ato de responsabilidade, consciente de que nem tudo está perdido e não se pode fazer tudo aquilo que se deseja."

Escândalos de pedofilia

"Não me apanharam completamente de surpresa. Na Congregação para a Doutrina da Fé me ocupei dos casos ocorridos nos EUA, e vi como crescia a situação na Irlanda. Mas a dimensão do escândalo foi um choque."

Igreja e mídia

"Nesta época marcada pelos escândalos, sentimos tristeza e dor diante de uma Igreja mesquinha e do fracasso de seus membros. Era evidente que a ação dos meios de comunicação não se guiava somente pela busca da verdade, havendo também certa satisfação em ridicularizar a Igreja e, na medida do possível, desacreditá-la."

A infalibilidade do papa

"O conceito se desenvolveu no decorrer dos séculos, em determinadas condições e circunstâncias. O papa pode tomar decisões vinculantes por meio das quais torna-se claro aquilo que é matéria de fé e aquilo que não o é. Isto não quer dizer que todas as afirmações do papa sejam infalíveis."

Burca

"Diz-se que algumas mulheres são obrigadas a usá-la contra a própria vontade - e não se pode estar de acordo com isto. Mas, se elas quiserem usá-la voluntariamente, não vejo motivo para proibir a burca."