Título: Microcrédito deslancha no Brasil
Autor: Scrivano, Roberta
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/12/2010, Economia, p. B10

Número de contratos fechados este ano já supera os 140 mil; nos anos anteriores, essa média ficava em torno de 80 mil Para acessar as ruelas da comunidade de Heliópolis, zona sul da capital paulista, há duas opções: a pé ou de moto. Na profissão há 12 anos, o agente de crédito Rafael Rey Rey, supremo conhecedor da maior favela de São Paulo, opta pela motocicleta e vai de porta em porta para oferecer empréstimo. Por dia ele fecha pelo menos dez contratos de microcrédito (nome dado ao empréstimo para pessoas de baixa renda). Os valores vão de R$ 300 a R$ 40 mil.

Sem comprovação de renda e residência, uma das condições para conseguir o dinheiro é responder a um longo questionário socioeconômico. Outra regra é ter um negócio dentro da comunidade há pelo menos seis meses. O empréstimo precisa ser aplicado no empreendimento, com o objetivo de melhorar a renda mensal das famílias da comunidade.

Essa modalidade de empréstimo existe no Brasil há décadas. Mas só neste ano a venda do produto ganhou corpo. Desde janeiro, o número de contratos mensais registrado pelos bancos supera 140 mil. Em 2009, não ultrapassava a barreira de 100 mil mensais. Levando-se em conta os anos anteriores, a quantidade de contratos nunca tinha passado de 80 mil, segundo dados do Banco Central.

Entre os grandes bancos, o que tem maior presença no microcrédito é o Santander. Na sequência, estão os estatais Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil. Depois vêm Itaú e Bradesco. O HSBC não trabalha com o produto. "O mercado nacional para o microcrédito é imenso. Hoje, menos de 10% da demanda potencial é atendida", comenta Lauro Gonzalez, coordenador do grupo de microfinanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Os motivos, segundo Gonzalez, são vários, mas o principal é a baixa taxa de juros cobrada na modalidade. Para empresários, a taxa máxima permitida por lei é de 4% ao ano. Há também o microcrédito para pessoas físicas. Essa opção deve ter taxa máxima de 2% ao ano. Santander e Bradesco não trabalham com a modalidade pessoa física.

Como o empréstimo precisa ser ofertado de porta em porta, além de outras características específicas como o contrato em conjunto (para que um cliente seja a garantia de pagamento do outro), o microcrédito é custoso. "Além disso, exige inovação, o que, muitas vezes, grandes bancos não conseguem fazer pelo tamanho da estrutura e preocupação com outros temas", completa o professor da FGV.

A inovação a que o professor se refere tem a ver com a dificuldade de entrar em comunidades e favelas e explicar à população, que em geral não é familiarizada com o tema, que o crédito é um produto disponível também para eles. "É um trabalho lento, de conquista da população", diz Andreia de Andrade, coordenadora da unidade de microcrédito do Santander em Heliópolis.

Sheila Fernandes Teixeira, de 48 anos, mora em Heliópolis desde 1977. "Quando eu cheguei aqui havia apenas três fileiras de barracos. Não era uma comunidade", conta. Há seis anos ela conheceu o microcrédito. "Nunca tinha ouvido falar. No começo dá receio, mas hoje já sei lidar bem com o empréstimo."

Seu agente de crédito é Rafael Rey Rey. "Tenho ele como um membro da família", emenda. Sheila já não sabe dizer quantos empréstimos fez. "O primeiro foi no valor de R$ 300 e o último, de R$ 40 mil", conta, salientando que só renova o contrato depois do término do pagamento do empréstimo anterior.

Seu primeiro negócio foi uma barraca de peixe na feira. "Hoje tenho um mercadinho que logo, logo vai virar um mercado bem maior", diz, sem esconder a empolgação. Com o último empréstimo, de R$ 40 mil, Sheila comprou uma casa assobradada na comunidade. "Com escritura", insiste. "Vamos colocar o mercado na parte da frente e vamos morar no fundo e no andar de cima."

Para Luís Miguel Santacreu, analista de bancos da Austin Rating, outro fator que inibe a participação maior dos bancos é o risco intrínseco aos negócios de porte muito pequeno. "A taxa de mortalidade de micro e pequenas empresas é altíssima no Brasil", comenta. Por isso, ele diz que, para o microcrédito crescer de forma sustentável no Brasil, é preciso que haja a criação de uma política social que provoque a saída da pobreza. "É preciso dar o crédito mas, junto com ele, uma formação técnica em gestão de empresas, por exemplo", comenta.

O índice de inadimplência do microcrédito aos empresários informais, no entanto, não supera 0,5%. "Isso porque é exigida a elaboração do grupo solidário", diz Jerônimo Ramos, superintendente de microcrédito do Santander. Na prática, o grupo solidário funciona como um seguro-fiança. Composto por no mínimo três empresários, um garante o pagamento da prestação caso o outro atrase a quitação.

Sheila, usuária há anos do microcrédito, afirma que só atrasou a prestação uma vez. "E foi porque meu marido se enganou com a data do vencimento, ou eu nunca teria atrasado."

PARA LEMBRAR

A Índia é líder na concessão de microcrédito. Instituições de grande porte especializadas na modalidade são comuns naquele país. Na última semana de novembro, no entanto, o principal microbanco indiano SKS Microfinance derrubou Wall Street. O motivo foi a divulgação de dados que mostram que o banco tem quase US$ 2 bilhões de empréstimos atrasados. O cenário inibiu que seu principal concorrente, o banco neozelandês Share MicroFin, efetuasse a oferta pública de ações de US$ 220 milhões programada para o fim deste ano. A crise no microcrédito indiano intensificou críticas ao redor do mundo sobre a modalidade. Os críticos afirmam que o microcrédito não é uma forma de estender crédito à população de baixa renda, mas de lucrar com eles. O argumento está baseado na taxa de juro cobrada pelos microbancos, de no mínimo 27% ao ano.