Título: O silêncio latino-americano
Autor: Margolis, Mac
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/01/2011, Internacional, p. A7

Hoje, quando os países da América Latina têm algo a dizer sobre os acontecimentos internacionais, não titubeiam. Todos os governos latino-americanos denunciaram a invasão americana do Iraque. Em 2009, logo que as Forças Armadas hondurenhas derrubaram o presidente Manuel Zelaya, a região inteira levantou-se contra o "golpe" contra a democracia.

Da mesma forma, nenhuma chancelaria ao sul do Texas pensou duas vezes ao execrar como violação à soberania nacional o ataque do Exército colombiano contra um acampamento das Forcas Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) na selva do Equador. Tão zelosa é a nova diplomacia latino-americana que diversos governos já reconheceram o Estado palestino, mesmo antes que ele exista.

E não poderia ser diferente. Na nova ordem mundial, em que as nações em desenvolvimento ganham cada vez mais autoridade e massa muscular, a diplomacia tradicional precisa abrir a roda para os novos protagonistas. A equação é simples: mais força, voz mais elevada. Bom, em termos.

E Hugo Chávez? O que ocorre quando o comandante venezuelano atropela a democracia? E quando Cristina Kirchner tenta, com ações grosseiras, intimidar a mídia opositora? E quando os presos políticos cubanos lançam um apelo de socorro a um país fraterno, como fizeram durante a visita do presidente Lula a Havana? O que ocorre quando a Nicarágua de Daniel Ortega invade a Costa Rica, um país sem Exército?

O problema não é que a América Latina se expresse demais ou fora da hora, mas quando se cala. É regra de ouro na diplomacia global que qualquer país tenha de dizer menos o que pensa e de agir de acordo com os interesses nacionais, mesmo que isso signifique se relacionar com brutos ou desagradar sensibilidades aliadas.

Agora, após o WikiLeaks, sabemos o quanto o condomínio de poder internacional pode ser um teatro de sombras, onde ressalvas, princípios e valores se curvam à "realpolitik". No entanto, o silêncio também fala e o costume que os países têm de ignorar barbáries à sua volta - seja por respeito à soberania nacional ou para não ofender um companheiro - tem sido berrante.

Cuba é o decano da indulgência, rotineiramente poupada do escrutínio da vizinhança, quiçá pelo serviço simbólico que Havana prestou ao orgulho continental por ter sobrevivido ao Golias ianque.

Hoje, é a Venezuela de Chávez o beneficiário disparado do indulto latino, ao mesmo tempo em que o regime bolivariano atropela as leis, sufoca liberdades, amordaça a mídia independente e deleta regras de conduta civilizatória.

Todos os sócios do Mercosul, menos o Paraguai - que sofre pressão intensa dos vizinhos -, já aprovaram o ingresso da Venezuela no bloco. Que se dane o Tratado de Ushuaia, que exclui do grêmio qualquer país que não garanta a "plena vigência das instituições democráticas".

Pode ser resultado da confiança exagerada dos demais governos, que acham mais prático "administrar" a intempestiva república bolivariana do lado de dentro do Mercosul do que fora dele.

O que dizer, contudo, quando a irmandade latina engrossa a voz contra a violação colombiana da soberania do Equador, mas se cala sobre o crime de prover sombra e água fresca (por negligência ou com a bênção dos vizinhos) a uma guerrilha assassina entocada no outro lado da fronteira?

Diversos governos, até mesmo dos EUA e da Europa, mais uma penca de organizações internacionais, como os Repórteres Sem Fronteiras e a Human Rights Watch, condenaram como um "assalto" à democracia a manobra de Chávez, do dia 17, de arrancar superpoderes de um Congresso dócil e sem medo de revés na Suprema Corte, loteada de chavistas.

Mas e a Unasul, o Parlamento do Mercosul, a Comunidade Andina e os governos da nova e brava América Latina emergente? Nada de sindicâncias, cúpulas emergenciais, muito menos reclamações formais, nem mesmo um pio qualquer no Twitter dos moderníssimos e antenados governantes da região.

O WikiLeaks nos revelou que a confraria latina não é assim tão amiga. Mas são raros os astros da nova diplomacia global com peito para dizer em voz alta o que sussurram às portas fechadas.

Dilma Rousseff, é verdade, criticou a condescendência brasileira no caso de Sakineh Ashtiani, a iraniana condenada ao apedrejamento, mas a presidente foi instantaneamente desautorizada pelo Partido dos Trabalhadores.

Uma grande exceção parece ser Mario Vargas Llosa, que numa reunião recente em Santiago chamou Chávez de "risível e anacrônico", a ditadura cubana de "vergonhosa" e alertou para uma região permeada de "populismos com resultados catastróficos".

A América Latina acaba de encerrar um período dos mais democráticos, prósperos e livres de sua história. Quem sabe esta não seja lembrada como mais uma década de silêncio.

É CORRESPONDENTE DA "NEWSWEEK", COLUNISTA DO "ESTADO" E EDITA O SITE WWW.BRAZILINFOCUS.COM