Título: Os EUA só estão no rumo da normalidade
Autor: Kennedy, Paul
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/01/2011, Internacional, p. A14

Perda de influência dos americanos no cenário internacional pode ser entendida como um processo natural pelo qual passaram outras grandes potências nos últimos séculos

Para onde vão os EUA? Será que chegou ao fim o efeito Obama, que começou com a promessa de deter o progressivo desgaste da imagem americana diante do mundo? Mais grave: estará o país em algum tipo de declínio terminal? Será que o país encontrou um adversário à altura no Afeganistão? E será que sua obsessão com a pouco definida guerra ao terrorismo desviou as atenções da constante e muito mais séria ascensão da China ao centro do palco mundial? Será que o dólar seguirá caindo, como a libra esterlina dos anos 40 aos anos 70?

É fácil responder "sim" a todas estas perguntas e, na América Latina, na Europa, no Oriente Médio, na Ásia e até nos EUA há muitos que acreditam nisto. Mas há outra maneira de se pensar na posição dos EUA: tudo isto é consequência de o país perder lenta e naturalmente seu status anormal dentro do sistema internacional e voltando a ser um dos participantes mais importantes dentro de um pequeno clube de grandes potências. A situação está só voltando ao normal.

Como aponta o historiador Eric Hobsbawn em sua grande obra Indústria e Império, perto de 1850 o pequeno Estado insular da Grã-Bretanha produzia possivelmente dois terços do carvão mundial, metade do ferro, cinco sétimos de todo o aço e metade dos tecidos de algodão do mundo. Esta posição extraordinária foi sem dúvida anormal. E assim que países que superavam a Grã-Bretanha em população e recursos (Alemanha, EUA, Rússia, Japão) se organizaram nos moldes britânicos, eles naturalmente passaram a se encarregar de uma parcela maior da produção mundial, recebendo uma maior parte do poder global e com isto reduzindo o domínio britânico a uma condição condizente com a normalidade. É algo considerado elementar por historiadores econômicos e políticos.

Por que não podemos encarar os EUA com esta mesma perspectiva de serenidade? É claro que estamos falando de um país muito maior e mais populoso do que a Grã-Bretanha jamais foi, e os americanos dispõem de muito mais recursos do que os britânicos, mas no longo prazo a trajetória é quase a mesma.

Depois de 1890, os EUA ultrapassaram lentamente o Império Britânico enquanto líder mundial por meio do empréstimo de algumas tecnologias fundamentais (a locomotiva, a ferrovia, a fábrica têxtil), acrescentando então suas próprias contribuições nas indústrias química e elétrica, demonstrando pioneirismo na produção de automóveis, aeronaves, hardware e software de computador. O país se valeu da sorte da distância geográfica em relação a outras potências (como ocorreu no caso da Grã-Bretanha e sua insularidade), e do estrago provocado em outras regiões pelas guerras mundiais (como ocorreu anteriormente com a Grã-Bretanha, beneficiada pelo estrago das Guerras Napoleônicas e Guerras Revolucionárias em outras partes do mundo). Assim, em 1945 os EUA eram donos de metade do PIB mundial, uma fatia impressionante e pouco diferente da posição britânica de um século atrás, quando o país era dono da maioria das locomotivas de todo o mundo.

Tripé. No caso americano, podemos desafiar esta argumentação ao retornarmos a uma explicação feita há 20 anos pelo estudioso Joseph Nye, de Harvard, segundo a qual a força e a influência dos EUA nas questões mundiais seriam como um robusto banquinho de três pernas. A superioridade do país dependeria de três pilares que reforçam uns aos outros: o poder brando, o poder econômico e o poder militar. Nye sugeriu que em todas estas três dimensões os EUA estavam confortavelmente à frente de qualquer outro concorrente.

Como esta interpretação pode ser feita hoje? Dos três pilares que sustentavam o banquinho de Nye, o poder brando - a capacidade de convencer outros países a atender os desejos americanos - parece o mais frágil. Não se trata de uma medida de poder que possa ser computada estatisticamente, como a produção de aço ou os gastos com a defesa. Além disto, será que alguém contestaria a afirmação de que a capacidade americana de influenciar outros Estados (como Brasil, Rússia, China e Índia) recuou nas últimas duas décadas? Quando Nye publicou suas conclusões, ele destacou como sinais da influência americana a importância da cultura popular (Hollywood, as calças jeans), o predomínio do idioma inglês, a padronização das empresas americanas (de cadeias da hotelaria até as regras contábeis) e a difusão da democracia.

Foram pensamentos interessantes, mas, desde então, vimos que estudantes radicais de Ancara até Amsterdã podem usar calças jeans e mesmo assim participar de manifestações contra os EUA. Pesquisa realizada pela Fundação Pew sobre a opinião pública global sugere que a aprovação dos EUA está recuando, apesar de uma breve tendência ascendente pela eleição de Obama.

Decadência econômica. Quanto ao enfraquecimento da segunda perna do banquinho - o relativo poderio americano que deriva de sua economia e do fato de sua moeda ser usada como divisa estrangeira predominante -, teríamos de ser cegos e surdos para não ter percebido sua óbvia deterioração. Uma potência verdadeiramente competitiva não pode deixar que seu déficit comercial aumente tão rápido.

Trata-se de uma situação que foi mascarada por milhares de economistas e conselheiros de investidores que emitem sinais positivos para seus clientes enquanto eles próprios são incapazes de pensar estrategicamente. Isto é agravado pelas tentativas do Congresso americano de obrigar a moeda chinesa a se fortalecer cada vez mais. Será que é mesmo isto o que desejam os EUA - tornarem-se mais e mais fracos? Nos últimos 500 anos de história das moedas e do poder, o florim holandês tomou o lugar do escudo espanhol; a libra esterlina tomou o espaço do florim (e do franco e do marco); e então o dólar tirou a libra do jogo. O fortalecimento da moeda chinesa pode abrir espaço para uma influência política chinesa muito maior sobre o mundo.

Militarismo. A força militar americana ainda é notável, mas até que ponto? Quase metade dos gastos mundiais com a defesa são feitos pelos EUA. Não surpreende que o país conte com numerosos porta-aviões, fuzileiros navais, uma força aérea de altíssima tecnologia e instalações de logística e espionagem sem paralelo. Dos três pilares, este é o mais sólido. Mas isto não quer dizer que não enfrente desafios.

O primeiro é a ascensão da guerra irregular, travada por participantes não estatais. Quem quer que tenha visto o filme Guerra ao Terror, que trata das sangrentas e desagradáveis experiências vivenciadas pelo Exército dos EUA no Iraque, sabe o que isto quer dizer. Significa que as ruas de Falluja ou, mais ainda, as estreitas passagens no alto das montanhas de Helmand, são fatores que tornam o conflito mais igual; a alta tecnologia não funciona tão bem contra um homem-bomba ou contra um explosivo improvisado cuidadosamente instalado no acostamento da estrada. As mais sofisticadas aeronaves não tripuladas são, na verdade, completamente estúpidas. Elas ajudam a evitar um compromisso com a vitória no campo de batalha e acabarão levando a uma derrota.

O segundo é o surgimento - condizente com o padrão histórico de ascensão e queda das grandes potências - de países desafiantes que estão invadindo o espaço geopolítico ocupado pelos EUA após 1945. A Rússia de Putin está retomando suas zonas históricas de controle e parece haver pouco que os EUA possam fazer se a Bielo-Rússia e a Letônia forem reabsorvidas pelo Kremlin. A Índia parece determinada a fazer com que o termo Oceano Índico seja indicativo de algo além da proximidade geográfica.

O que é reconfortante, pois frustrará as tentativas desajeitadas e decididas da China no sentido de obter os recursos minerais africanos, dos quais o país tanto necessita. Mas, com seus novos e sofisticados sistemas de armas, a China pode em breve dispor da capacidade de afastar a Marinha americana de suas praias. Gostem ou não, os EUA perderão muito do seu espaço na Ásia.

Dependência. Por fim, temos a mais grave das ameaças: a perigosa e crescente dependência dos americanos de outros governos financiarem seu próprio déficit nacional. O poderio militar não pode se apoiar sobre pilares de areia; ele não pode depender, indefinidamente, de líderes estrangeiros. O presidente e o Congresso parecem incapazes de preparar um pacote fiscal austero e efetivo. E agora os amalucados do Tea Party estão exigindo uma política de corte de impostos e redução dos gastos que faz a famosa reunião para o chá promovida pelo Chapeleiro Maluco parecer um encontro de pessoas razoáveis.

Isto é preocupante para seus vizinhos, para seus muitos amigos e aliados; é preocupante até mesmo para Estados como Índia e Brasil, que nos próximos anos desempenharão papéis mais importantes nas questões mundiais. Todos nós devemos ter cuidado ao desejar o fim da relativamente benigna hegemonia americana; podemos nos arrepender depois que ela acabar. O ir e vir da maré da história vai encerrar esta hegemonia. A posição global ocupada pelos EUA é forte, séria e de grandes proporções. Mas, francamente, ainda é anormal. O país terá de descer um ou dois degraus. Os EUA deixarão de ser uma potência mundial desproporcional e se tornarão um grande país, que terá de ser ouvido. Os EUA ainda serão importantíssimos, apenas menos do que antes. Isto não é mau. Teremos uma situação mais normal. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

É PROFESSOR DE HISTÓRIA E DIRETOR DE ESTUDOS DE SEGURANÇA INTERNACIONAL NA UNIVERSIDADE YALE. PUBLICOU "ASCENSÃO E QUEDA DAS GRANDES POTÊNCIAS"