Título: Guerra comercial entre EUA e China é o maior perigo
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/01/2011, Economia, p. B8

Na visão do ex-chefe do FMI, uma medida catastrófica seria taxar produtos chineses, o que contaminaria o mundo

Para Kenneth Rogoff, da Universidade Harvard e ex-economista-chefe do poderoso Fundo Monetário Internacional (FMI), um dos maiores riscos para a recuperação da economia global são grandes erros que os países ricos possam cometer diante da lenta, sofrida e acidentada recuperação dos Estados Unidos e da Europa.

Uma "decisão catastrófica" particularmente temida por ele seria a de o Congresso americano lançar o país numa guerra comercial contra a China, o que poderia contaminar o mundo todo. Coautor, junto com Carmen Reinhart, de Oito Séculos de Delírios Financeiros - Desta Vez é Diferente, uma elogiadíssima história de 800 anos de crises econômicas, Rogoff conversou por telefone com o Estado sobre as perspectivas da economia global, incluindo o Brasil, em 2011.

Pouco mais de dois anos depois da eclosão da crise financeira global, como o sr. vê a situação hoje?

Já superamos o momento mais profundo da crise, mas Estados Unidos e Europa ainda estão comprometidos por imensas dívidas, tanto do governo quanto do setor privado. As dívidas privadas estão muito acima de qualquer coisa que tenhamos visto antes. E as dívidas dos governos atingiram níveis similares aos picos do fim da Segunda Guerra Mundial. A desalavancagem, isto é, a redução dessas dívidas fora de proporção para tamanhos mais sustentáveis, é realmente o grande desafio por muitos anos à frente. Além disso, o desemprego subiu tremendamente nos Estados Unidos. Na Europa, não subiu tanto, mas já saiu de um nível muito alto.

Quais as perspectivas de desempenho dessas economias daqui para a frente?

Acho que em ambas as regiões está havendo um crescimento normal, mas não fantástico. Existem diferenças, é claro. O Fed tem sido muito mais agressivo (nos estímulos monetários, comparado ao Banco Central Europeu), e a política fiscal nos Estados Unidos também tornou-se muito mais agressiva. Mas ambos estão em estágios similares no ciclo econômico.

Como o sr. caracterizaria essa recuperação?

O crescimento na Europa e nos Estados Unidos não é rápido o suficiente para fazer uma redução mensurável na taxa de desemprego, que provavelmente vai flutuar perto do nível de dois dígitos por um longo período, nas duas regiões. Eu acredito que essa recuperação insuficiente para reduzir o desemprego é absolutamente típica na sequência de uma crise financeira, como mostra o meu livro Desta Vez é Diferente. Nessa situação, sempre foi exatamente o que estamos vendo agora: recessão profunda, retomada vagarosa, desemprego persistente e uma crescente carga de dívida, especialmente dos governos.

Esse ritmo é suficiente para ajudar o mundo voltar à normalidade?

É um ritmo lento, mas Estados Unidos e Europa devem acabar tendo uma recuperação completa. Na verdade, acho que o desafio do mundo rico hoje é o de não fazer grandes erros de política econômica que provoquem uma nova queda, levando o desemprego a permanecer alto até por mais tempo do que já deve ficar. Estou particularmente preocupado com o comércio internacional. O desemprego está muito alto nos Estados Unidos, há uma eleição em 2012 e o Congresso é sempre protecionista. O presidente Barack Obama certamente descreve a si mesmo como um defensor do livre comércio, mas, se considerarmos os seus discursos ao longo dos anos, parece ter perdido convicção em relação a isso. Por que o governo americano não assinou o acordo de livre-comércio com a Colômbia, por exemplo? Então, estou preocupado com a possibilidade de que o baixo crescimento se traduza em algum tipo de decisão política catastrófica. É claramente o maior perigo.

Que tipo de decisão catastrófica?

O maior perigo é que o Congresso americano se volte contra a China. Por exemplo, ameaçando colocar uma tarifa de 25% nas exportações chinesas de têxteis ou de produtos eletrônicos de consumo se o yuan não tiver uma valorização significativa. Nós já vimos um sentimento muito favorável a uma lei desse tipo durante a campanha eleitoral para o Congresso em 2010. A China não vai ficar parada diante de uma medida dessas, e certamente vai retaliar com suas próprias medidas protecionistas, a partir das quais uma escalada maior pode ganhar vida própria.

Que outros riscos o sr. vê para a economia global?

Bem, o perigo de instabilidade geopolítica emanando do Irã e da Coreia do Norte é claramente maior agora do que há um ano. A Coreia do Norte está passando por uma transição de regime, de algo maluco para algo mais maluco ainda. E o Irã está correndo em direção a se tornar uma potência nuclear altamente problemática. O perigo é que um desses países instigue um grande conflito que desestabilize o mundo.

E o perigo de uma crise mais grave na Europa?

De fato, em 2011 a atenção continuará voltada para a Europa, onde os líderes estão em denegação. Eles acham que, fornecendo maciças e crescentes doses de liquidez, podem evitar para sempre ter de lidar com a reestruturação da dívida soberana de governos como Irlanda, Portugal e Grécia, ou até de dívida bancária através da Europa. Essa ideia é nonsense e eles acabarão tendo de reconhecer isto. Os problemas que Grécia, Portugal, Irlanda e Espanha estão enfrentando atualmente são profundos. Por outro lado, na medida que a Itália e outros países centrais possam ser protegidos, acho que haverá crescimento sólido na Europa. Esses países mais afetados, com exceção da Espanha, são muito pequenos diante da economia europeia.

A camisa de força cambial do euro não atrapalha os países com problemas?

Sim, eles estão altamente não-competitivos. Seus salários subiram demais, seus setores exportadores encolheram e precisam ser rejuvenescidos. Está claro que o euro não está funcionando bem para eles neste momento. Se pudessem desvalorizar suas taxas de câmbio, isto faria com que fosse muito mais fácil passar por uma reestruturação da dívida, recuperar competitividade e superar o problema via exportação, como tantos países fizeram no passado. Acho, portanto, que a melhor solução seria reestruturar as dívidas e colocar os países da periferia num sabático do euro, isto é, sair temporariamente da zona do euro e ter as suas próprias moedas. Mas essa ideia é categoricamente rejeitada pelos líderes europeus, o que deixa aqueles países em uma situação muito mais difícil para lidar com a reestruturação.

O sr. está otimista quanto à continuidade do crescimento na China?

Sim, mas acho sem sentido a ideia de que a China vai simplesmente continuar com o seu crescimento de 10% sem jamais experimentar uma desaceleração, provavelmente aguda, que é normal nos ciclos econômicos. Esse é ainda um risco muito alto para a economia global, com certeza. As autoridades chinesas veem o risco de superaquecimento e têm intenção de baixar os preços dos ativos e controlar a inflação, mas querem fazê-lo sem interromper o crescimento.

O sr. acha que a China está fazendo a transição em direção a um crescimento baseado no mercado interno?

Não de forma significativa, porque essa é uma transição muito difícil. É verdade que o consumo da China tem crescido num ritmo de dois dígitos, mas a partir de uma base muito baixa. O problema é bem mais profundo do que simplesmente trocar demanda externa por interna. A China tem uma política de competição muito fraca. As indústrias voltadas para dentro do país não são tão impressionantes quanto as voltadas à exportação, para as quais os mercados mundiais servem como árbitro de quem ganha e quem perde. Se a China tentasse se mover rápido demais na direção do consumo interno, ela teria muitos problemas com monopólios, falta de inovação, interferência política, compadrio. Não está claro que eles possam manter o crescimento de produtividade das últimas décadas com uma estratégia tão voltada para dentro.

Qual a sua visão sobre o Brasil?

O Brasil teve um ano magnífico em 2010 e deve ter um crescimento sólido em 2011, embora menos acelerado. A inflação ascendente é uma preocupação, mas, na verdade, o principal ponto de interrogação no longo prazo no Brasil é se o novo governo será capaz de tomar os passos certos para continuar a fortalecer os fundamentos e se preparar para o dia em que o País passar por uma situação mais desafiadora. Como, por exemplo, uma redução dos benefícios do comércio com a China, ou uma reversão dos fluxos de capital. Acho particularmente importante controlar o tamanho do governo, que continua a se expandir, melhorar a educação e tocar reformas estruturais.