Título: Crise no time bolivariano
Autor: Palácios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/10/2010, Internacional, p. A8

As cenas nas ruas de Quito, na quinta-feira, pareciam ter sido produzidas para o cinema. Alto e desafiante, o presidente do Equador, Rafael Correa, apareceu na janela de um hospital da capital, empunhou um microfone, soltou a gravata com força e soltou a voz. ¿Se querem matar o presidente, cá estou!¿, berrou, para o aplauso da multidão. ¿Matem-me se tiverem coragem!¿ O momento acabou no YouTube e ganhou o mundo. Tentativa de golpe de Estado ou teatro bolivariano? A dúvida ainda paira sobre os Andes, tão espessa como a nuvem de gás lacrimogêneo nas ruas de Quito. O desabafo de Correa foi o clímax de um dia que começou mal, com uma revolta policial contra uma nova lei de austeridade, e acabou pior, em embate entre policiais, Forças Armadas e cidadãos enfurecidos. As 12 horas que se seguiram mostram bem a ambição e a força de um dos sócios majoritários da revolução bolivariana, nascida na Venezuela de Hugo Chávez e evangelizada cordilheira , afora, ao mesmo tempo em que expõe suas maiores fragilidades. Na tarde de quinta-feira, um grupo de policiais tomou as ruas, inconformado com uma nova lei que limita aumentos salariais e tabela os benefícios de servidores públicos. Correa, em um gesto de confiança (ou provocação?) foi ao encontro dos rebelados para negociar. Levou um banho de gás lacrimogêneo e acabou no hospital. Os policiais foram atrás e, de capacete quente, cercaram o hospital e fizeram do presidente seu refém. Os populares tomaram as dores de Correa e hostilizaram os policiais amotinados. As Forças Armadas entraram em cena. Disparando tiros e mais gás lacrimogêneo. Após uma dúzia de horas de ameaças, bate-boca e bravatas, cinco mortos e um país em pé de guerra. Para muitos equatorianos, o enredo do dia 30 foi uma lembrança dos piores momentos da sua historia recente, quando a convulsão social e política sacudiram a pobre nação andina com regularidade espantosa. Nos últimos 14 anos, três presidentes foram derrubados, seja por golpe militares ou por impeachment, todos ao bafo de pólvora. Correa não perdeu tempo e, prontamente, atribui os distúrbios aos golpistas, seja lá quem fossem. Ainda teve o endosso de todos os vizinhos sul-americanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e até dos Estados Unidos, enquanto Chávez, seu aliado mais próximo, denunciou um complô de ¿bestas fascistas¿.

Pacote bolivariano. A realidade é mais complexa. Embora quase todos no Equador tenham condenado o levante policial, tampouco prosperou a tese de um golpe de Estado. Ninguém mais tomou as ruas para apoiar o motim. Os desafetos políticos de Correa não abanaram as chamas da crise e nenhum generalíssimo mobilizou tropas ou tanques. Ao contrário, as Forças Armadas escudaram o presidente, o comandante da policia se demitiu e os rebelados foram detidos. No entanto, Correa insistiu na versão de que o desastrado protesto fardado era uma ameaça ¿à nossa revolução popular¿. Decretou um estado de emergência nacional e mandou os canais de rádio e televisão suspenderem ¿indefinidamente¿ sua programação, transmitindo em cadeia nacional, supostamente para não insuflar os ânimos populares. Faz parte do seu show. Populista ardente, Correa alavanca seu carisma, os anseios dos mais pobres e o reprimido orgulho indígena dos Andes para redesenhar a sociedade equatoriana e já mandou reescrever a Constituição para encampar o socialismo do século 21 do vizinho Chávez. Essa conhecida receita bolivariana - embora mais ligth do que aquela empregada pelos aliados Venezuela e Bolívia ¿ espanta investidores, agrava tensões e demandas sociais históricas, que são fáceis de cutucar, mas difíceis de administrar. ¿Quem semeia vento, colhe tempestade¿, disse o influente comentarista Diego Oquendo, do jornal Ecuador em Vivo, após a crise. De sua parte, Corre parece resoluto. Emergiu do embate de quinta-feira abatido, mas desafiante. Declarou ainda que pensa em dissolver o Congresso e convocar novas eleições. A violenta rebelião policial foi um exemplo das tensões perigosas embutidas no pacote bolivariano. Pode não ser a última.