Título: Mubarak já saiu de cena e Exército tenta se salvar
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2011, Internacional, p. A9

Gilles Kepel, TITULAR DA CÁTEDRA DE ORIENTE MÉDIO DA SCIENCES-PO, DE PARIS

As turbulências no Oriente Médio e a aproximação do Brasil com países árabes trouxeram a Brasília, para uma palestra no Instituto Rio Branco, o renomado orientalista francês Gilles Kepel, titular da cátedra de Oriente Médio do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-po) e professor da London School of Economics. Ao Estado, Kepel qualificou de "insustentável" a situação do presidente Hosni Mubarak e disse haver no Cairo uma barganha entre militares e civis que decidirá o futuro do Egito.

Como o sr. vê os últimos acontecimentos no Egito?

Mubarak já foi colocado para escanteio pelo novo vice-presidente, o ex-chefe da inteligência Omar Suleiman. É ele quem passou a segurar as rédeas do país efetivamente.

E o que pretende Suleiman?

É preciso salvar a credibilidade do Exército. Para Suleiman, não se pode deixar simplesmente Mubarak cair, porque seria um sinal de que o Exército não conseguiu defender o poder. Por isso, negocia-se uma transição nos bastidores com (o diplomata) Mohamed ElBaradei, para que os militares possam salvar sua credibilidade e não fique a imagem de que foi a rua árabe que derrubou Mubarak.

E quais são as maiores dificuldades para o regime?

As eleições do ano passado foram totalmente fraudadas e a tensão aumentou com os recentes atentados em Alexandria, contra cristãos. Suleiman me disse, quando tive a oportunidade de conversar com ele, recentemente, que tem um grande receio de ver chegar ao poder a Irmandade Muçulmana. É preciso achar um acordo entre o Exército e a revolta popular. Nesse contexto, Mubarak será sacrificado. O mais importante, porém, é que não haja espaço para que a Irmandade consiga traduzir para a política a importância social que ela alcançou.

A saída seria ElBaradei?

A saída é implementar no Egito uma Constituição democrática, um sistema de poder democrático. Hoje, o Egito é um regime militar e é preciso ver o quanto as Forças Armadas vão querer ceder de espaço ao poder civil.

A presidente Dilma Rousseff está dando sinais de que não pretende dar carta branca a países que violam sistematicamente os direitos humanos. Em relação ao Oriente Médio, como o sr. avalia essa mudança do Brasil?

Não sei se essa nova posição é a melhor para a política externa brasileira. Mas, com certeza, é boa para o Oriente Médio exatamente por defender os direitos humanos. Quanto mais países não europeus, como o Brasil, apoiarem essa causa, mais os povos da região poderão enfrentar suas lutas locais.

É procedente o temor de que o fundamentalismo assuma o poder no Egito?

O que se viu no Irã em 1979 foi, no início, uma revolução rumo à democracia, mas o país acabou tomado pelo aiatolá Khomeini. Na Argélia, também houve uma revolução em 1988 e essa foi recuperada pela Frente Islâmica de Salvação (FIS).

Há um temor de que as manifestações se espalhem pelo Oriente Médio?

Não sei se há receio ou esperança. Até hoje, a situação naquela região estava bloqueada, seja pelas ditaduras, seja pelo vetor forte da religião, com forças fundamentalistas. Espero que o diálogo e a construção de uma democracia possa acontecer, acabando com esse bloqueio que existe provocado pelo autoritarismo de um lado e a religião fundamentalista de outro.

Houve intromissão indevida do Brasil naquela região na questão do Irã?

Eu acho que não. A partir do momento que você atua no cenário internacional, existe essa questão do Oriente Médio, que tem aspectos globais. E todas as potências emergentes como Brasil, India, China e Cingapura, acabam se envolvendo necessariamente. Só que a atuação política no Oriente Médio se dá em águas profundas e é preciso saber nadar muito bem para lidar com estas questões. Até a Europa viu que não nada tão bem nessas águas. Brasil e Turquia tentaram achar uma saída. Foi uma tentativa positiva de tentar evitar um conflito, que encontrou resistência na ONU.

Vários países da América Latina têm reconhecido o Estado palestino. Como o sr. vê esse movimento?

Ele traduz a realidade dos fatos. O problema é que não temos um Estado palestino, mas dois: um na Cisjordânia, com o Fatah, e outro em Gaza, com o Hamas no poder. O que precisamos hoje é que o próprio povo palestino - o Estado palestino - se una.