Título: A irmandade à espreita
Autor: Sant"Anna, Lourival
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/02/2011, Internacional, p. A10

O déspota Hosni Mubarak não faz mais barulho. Ele certamente está contando e recontando os US$ 40 bilhões (ou talvez US$ 80 bilhões, não se sabe ao certo) que extraiu do corpo exangue do Egito em 30 anos de poder. O vice-presidente Omar Suleiman tenta recuperar a iniciativa e passar da fase revolucionária aberta há 15 dias a uma fase política. Ele recebeu todos os opositores, entre eles a Irmandade Muçulmana.

No início dos tumultos, a irmandade estava ausente. Isso tranquilizava. Mas aí está ela de volta. E, com ela, o medo. Não esqueçamos que a Irmandade Muçulmana tem entre 3 milhões e 5 milhões de membros no Egito. Os intelectuais franceses, em geral tão hábeis em nos dizer o que devemos pensar, hoje estão balbuciantes. Jean-François Kahn e Laurent Joffrin (diretor do jornal Libération) permanecem confiantes. Já André Glucksmann e Alain Finkielkraut temem que a Irmandade Muçulmana e os islâmicos radicais "cortem as asas da democracia" .

O que é essa irmandade? Foi fundada em 1928 por um professor, Hassan al-Badah (avô do brilhante teólogo muçulmano Tariq Ramadan). Dessa "confraria" saíram os temas que estruturam o extremismo islâmico: a jihad (guerra santa), a sharia (justiça islâmica), o antiocidentalismo e a recusa da secularização.

"Deus é o nosso fim", proclama a irmandade. "O Profeta é nosso chefe, o Alcorão é nossa Constituição, a jihad é nossa via e o martírio, a nossa esperança." A irmandade também tomou emprestado dos salafistas (oriundos da Arábia Saudita e muito presentes no Magreb), o desejo de "retorno do Islã às suas origens". De 1928 para cá, a irmandade evoluiu. Durante muito tempo, pregou ou praticou a violência. Seu ideólogo, Sayyid Qutb, que tratava como apóstatas os regimes árabes que não aplicavam a sharia e queria desencadear a jihad contra eles, foi enforcado por Gamal Abdel Nasser em 1966.

Um antigo membro da irmandade se tornou célebre mais tarde: o egípcio Ayman al-Zahawiri, braço direito do chefe da Al-Qaeda, Osama bin Laden. Outro ex-integrante que não se alinha com os "não violentos": o homem que assassinou o presidente Anwar Sadat em 1961, para puni-lo pela paz com Israel.

Compreende-se por que o ressurgimento da irmandade por ocasião das manifestações do Cairo pode preocupar. Mas outros sinais divulgam opiniões contrárias. É inegável que desde a morte de Sadat ela nunca mais empreendeu ações violentas. Durante o reinado de Mubarak, a irmandade nunca deixou de jogar a carta da democracia, apresentando candidatos em todas as eleições, exceto quando Mubarak a proibia. Ela se dedicou a ações humanitárias (hospitais, creches, escolas) com talento.

Desde o início dos tumultos, a irmandade mantém um discurso tranquilizador. Condenou os assassinatos dos cristãos egípcios, jura que não quer tomar o poder, promete que jamais imporá a sharia contra o desejo dos egípcios. Garante ter aceitado que os jovens do país não sejam "barbudos". E acatado o fato de as mulheres não usarem véus. Apresentam-se como democratas, com fome de modernidade, liberdade, alegria e tolerância. Alguns dão crédito a esse discurso. Dizem que foi-se o tempo em que o aiatolá Khomeini tomava o poder e instalava um regime brutal e medieval no Irã. Os jovens que abalaram Mubarak não tolerariam o retorno da jihad e da sharia.

Outros permanecem cautelosos: "No Egito, há 40% de famintos e 30% de analfabetos", diz André Glucksmann. "Pelas sondagens realizadas em 2010 pela Pew, 82% dos egípcios muçulmanos desejam a aplicação da sharia e o apedrejamento de adúlteras; 77% acham normal cortar as mãos de ladrões; e 84% defendem a pena de morte para quem muda de religião. Eis o que impede ingenuidades futurológicas muito róseas."

Jean-François Kahn respondeu: "Combati toda veleidade de tolerância com o islamismo jihadista radical tanto no Afeganistão como na Argélia. Mas demonizar a priori toda tentativa de reintegrar o islamismo político a um jogo democrático exigente beiraria à cegueira". / TRADUÇÃO DE CELSO M