Título: De volta às ruas do Irã
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2011, Notas e informações, p. A3

Faltou combinar com os fatos - e com o povo. A teocracia de Teerã saudou a revolta que culminou com a derrubada do ditador egípcio Hosni Mubarak, na esteira dos também vitoriosos protestos contra o déspota tunisino Zine el Abidine Ben Ali, como um "despertar islâmico" inspirado pela revolução iraniana de 1979. Nada mais falso: nem em Túnis nem no Cairo a religião inspirou ou conduziu os movimentos que despertaram, isso sim, os reprimidos anseios por liberdade e modernização da economia no mundo islâmico.

Mistificados por suas próprias fantasias, porém, os líderes fundamentalistas do Irã, a começar do aiatolá Ali Khamenei e do presidente Mahmoud Ahmadinejad, demoraram a se dar conta de que a oposição iria tomar o seu equivocado endosso à insurreição egípcia como pretexto para voltar às ruas - contra o governo. Às pressas, decidiram proibir as concentrações programadas para a segunda-feira na capital e outros importantes centros e decretaram a prisão domiciliar do dissidente Mir Hussein Mousavi, cuja fabricada derrota na eleição presidencial de 2009 desencadeou as maiores manifestações no país em 30 anos.

Apesar da brutal repressão que se seguiu - calcula-se que 80 iranianos tenham sido mortos ou condenados à execução - o chamado Movimento Verde, em alusão à cor dos estandartes eleitorais de Mousavi, demonstrou estar "vivo e passando bem", nas palavras do opositor. Desta vez, a Guarda Revolucionária iraniana não esperou as multidões se formarem para dispersá-las. Mas o bloqueio ao centro da capital não impediu que ali se juntassem cerca de 25 mil manifestantes, atacados a bastonadas, tiros e bombas de gás. Dezenas foram presos. Um foi morto.

Tivessem as autoridades permitido os protestos - uma hipótese obviamente absurda - milhões de pessoas teriam ido às ruas, comentou um porta-voz de Mousavi. De toda forma, elas deram o seu recado. "Mubarak, Ben Ali", cantavam. "Agora é hora de Sayyid Ali" (o nome do grão-aiatolá Khamenei). Sinal da fúria reacionária com a retomada dos protestos, meia centena de deputados governistas exigiram ontem a pena de morte para Mousavi e Mhedi Karroubi, o ex-presidente da Casa que passou para a oposição e está em prisão domiciliar.

A secretária de Estado Hillary Clinton disse que os EUA apoiam "muito clara e diretamente" os manifestantes. "Desejamos à oposição e ao bravo povo nas ruas do Irã a mesma oportunidade que eles viram os seus contrapartes egípcios conquistar na semana passada." Antes tivesse ficado calada. As suas palavras refletem a piramidal hipocrisia dos EUA diante do movimento libertário que transfigura a esfera árabe-muçulmana. Durante a Revolução de 25 de Janeiro contra a ditadura egípcia apoiada sem hesitações por Washington ao longo de três décadas, a Casa Branca gaguejou mensagens contraditórias - e só falou "muito claramente e diretamente" quando Mubarak já era.

Não há nada de novo nisso. Desde a guerra fria, os Estados Unidos dividiram as tiranias do mundo em dois grupos - as "nossas" (muitas das quais criaturas suas) e as "deles" (que faziam o jogo da União Soviética). A diferença é que o presidente Barack Obama, amplificando a retórica do antecessor George W. Bush, comprometeu a política externa americana com a promoção da democracia e dos direitos humanos no globo, sem distinguir entre aliados e regimes hostis. Foi no Cairo, por sinal, que Obama fez um pronunciamento histórico nessa linha. A louvação dos ativistas iranianos pela liberdade apenas acentua o fato de que, no Egito, os EUA perderam uma oportunidade excepcional de ficar do lado certo da história.

Os jovens que protestam na Argélia, no Iêmen, na Jordânia, na Síria, em Bahrein e cercanias não se perguntam se os governantes que os amordaçam são pró ou antiamericanos. O que eles querem é fazer parte do mesmo mundo contemporâneo que produziu a tecnologia digital que lhes serve de meio de mobilização - e, mais do que isso, símbolo das sociedades onde outros jovens podem usar as suas vozes como e quando queiram. A demanda por democracia é decorrência.