Título: Novas democracias. Ou algo parecido com isso
Autor: Kaplan, Robert D.
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/03/2011, Internacional, p. A13

Um dos obstáculos no Oriente Médio é que os jovens, ágeis e dispostos a desafiar balas, podem derrubar um sistema, mas não conseguem governá-lo

Com a deposição de regimes autocráticos no Egito e na Tunísia - e de outros ditadores árabes, como o da Líbia, que está cercado - alguns anunciaram euforicamente a chegada da democracia ao Oriente Médio. Mas alguma coisa mais sutil pode se desenvolver. Os regimes que surgirem poderão se chamar democracias e o mundo poderá compactuar com a mentira, mas o teste de um sistema é como as relações de poder funcionam nos bastidores.

Em Estados com tradições institucionais relativamente fortes, como Tunísia e Egito, uma forma de democracia pode de fato se desenvolver. Mas lugares que são menos Estados que expressões geográficas, como a Líbia e o Iêmen, mais provavelmente produzirão regimes híbridos.

Dentro desses sistemas - com os quais a história está bastante familiarizada - militares, serviços de segurança interna, tribos e partidos políticos inexperientes competem por influência.

Esse processo produz incoerência e instabilidade porque combina atributos do autoritarismo e da democracia. Isso não é tanto uma anarquia como um tatear do terreno para a verdadeira modernidade.

Outro obstáculo para surgirem rapidamente democracias acabadas no Oriente Médio é que os jovens, ágeis nas mídias sociais e dispostos a desafiar balas, podem derrubar um sistema, mas não conseguem necessariamente governar. Para isso, são necessárias organizações hierárquicas. E enquanto elas se desenvolvem teremos vários sistemas mistos - vários tons de cinza em vez de ditadura contra democracia pura e simples.

Quando o cristianismo espalhou-se pela bacia do Mediterrâneo no fim da antiguidade, ele não unificou o mundo antigo nem o tornou moralmente mais puro; ele se dividiu em vários ritos, seitas e heresias que se enfrentavam. A política do poder continuou muito parecida com o que era antes. Alguma coisa parecida poderá ocorrer com a propagação da democracia.

O sistema em evolução de cada país árabe criará um cenário familiar: os EUA tinham uma relação relativamente tranquila com o México quando este era uma ditadura de partido único. Mas à medida que o México evoluiu para uma democracia multipartidária, as relações se tornaram mais difíceis e mais complexas.

Já não havia um homem ou um número telefônico para discar quando surgia uma crise. Washington precisou fazer lobby simultaneamente com uma série de personalidades mexicanas. Uma era de complexidade parecida está para surgir no mundo árabe - e não se tratará apenas de conseguir que as coisas sejam feitas, mas também de saber quem está realmente no comando.

As sublevações no Oriente Médio terão um efeito mais profundo na Europa do que nos EUA.

Assim como a Europa deslocou-se para o leste para englobar os antigos Estados satélites da União Soviética em 1989, ela agora se expandirá para o sul. Durante décadas, o Norte da África foi efetivamente isolado da borda setentrional do Mediterrâneo por causa dos regimes autocráticos que sufocavam o desenvolvimento econômico e social enquanto promoviam políticas extremistas.

O Norte da África deu à Europa migrantes econômicos, mas pouca coisa mais. Mas, à medida que seus Estados evoluírem para regimes híbridos as interações políticas e econômicas com a vizinha Europa se multiplicarão. Alguns daqueles migrantes árabes poderão retornar para suas casas quando políticas reformistas criarem novas oportunidades. O Mediterrâneo se tornará um conector, e não o divisor que tem sido durante a maior parte da era pós-colonial.

Claro, Tunísia e Egito não estão prestes a ingressar na União Europeia. Mas eles se tornarão zonas de sombra de um envolvimento aprofundado da UE. A própria UE se tornará um projeto ainda mais ambicioso e pesado.

O verdadeiro beneficiário desses levantes num sentido histórico e geográfico é a Turquia. A Turquia otomana governou o Norte da África e o Oriente Médio por centenas de anos na era moderna. Apesar de esse regime ser despótico, ele não foi opressivo ao ponto de ter deixado cicatrizes duradouras nos árabes de hoje.

A Turquia é um exemplo de democracia islâmica que pode servir de modelo para esses Estados recém-libertados, especialmente porque sua democracia evoluiu de um regime híbrido - com generais e políticos dividindo o poder até recentemente. Com 75 milhões de habitantes e uma taxa de crescimento econômico de 10%, a Turquia é também uma jamanta demográfica e econômica capaz de projetar poder brando através do Mediterrâneo.

O afastamento do Oriente Médio do autoritarismo ironicamente inibirá a projeção do poder americano. Em razão da complexidade de regimes híbridos, a influência americana em cada capital será limitada: a Turquia mais provavelmente será o avatar para o qual os árabes recém-libertados olharão. A influência dos EUA provavelmente será mantida menos pelo surgimento da democracia do que por sua ajuda militar contínua a muitos Estados árabes e pelas divisões que continuarão a assolar a região, especialmente a ameaça de um Irã xiita nuclearizado.

O enfraquecimento geopolítico do próprio mundo árabe é um fator de mitigação para a perda de poder americana. À medida que as sociedades árabes se voltarem para dentro para corrigir os agravos sociais e econômicos desde há muito ignorados e seus líderes em sistemas híbridos se enfrentarem uns com os outros para consolidar domesticamente seu poder, eles terão menos energia para questões de política externa.

O cientista político Samuel Huntington escreveu que os EUA herdaram essencialmente seu sistema político da Inglaterra e, com isso, sublevações políticas periódicas da América tiveram a ver mais com subjugar a autoridade do que com criá-la do zero.

O mundo árabe agora tem o desafio oposto: ele precisa criar ordens políticas legítimas da poeira das tiranias. A próxima fase da história do Oriente Médio será dominada menos pela questão da democracia do que pela crise da autoridade central. / TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

É BOLSISTA SÊNIOR NO CENTRO PARA UMA NOVA SEGURANÇA AMERICANA E CORRESPONDENTE DA REVISTA "ATLANTIC". ELE É O AUTOR DE "MONSOON: THE INDIAN OCEAN AND THE FUTURE OF AMERICAN POWER"