Título: Confraria dos autocratas
Autor: Sant¿Anna, Lourival
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2011, Internacional, p. A8

Foi apenas uma chama em meio à conflagração que consumia as ruas do Oriente Médio, mas a notícia de que o carrasco da vez, Muamar Kadafi poderia, no aperto, contar com o apoio do povo irmão da Venezuela varreu a diplomacia das Américas. "Venezuela manterá contatos com o mundo árabe para buscar a paz", disse o ministro de informações venezuelano à Reuters, causando imediato alvoroço de Caracas a Washington. Será que mais um ditador se aposentará por aqui?

Ninguém acrescentou detalhes e Saif al-Islam, filho do homem forte líbio, rejeitou a "gentil" proposta venezuelana. Mas da lógica caolha da autocracia internacional, o plano até faz certo sentido.

Venezuela e Líbia nutrem amizade fraterna há longa data e não há no Ocidente, talvez no mundo, nenhum amigo mais fiel ao coronel líbio do que o venezuelano Hugo Chávez. Mais importante, os dois líderes supremos, embora em feudos distantes, fazem parte de uma sociedade maior, a confraria dos autocratas, em que um bruto zela pelo outro.

E se tudo for água abaixo, há sempre um território amigo onde um déspota em apuros pode se refugiar, às vezes até com aval internacional. Assim, Idi Amin, de Uganda, terminou seus dias na Arábia Saudita enquanto o ditador de 31 anos do antigo Zaire, Mobutu Seko, correu para Togo e Marrocos, ambos regidos por tiranos. Mengistu Haile Mariam, o "açougueiro de Adis-Abeba", ainda curte exílio no Zimbábue de Robert Mugabe.

A permuta de ditadura nem sempre dá certo. O nicaraguense Anastasio Somoza migrou ao Paraguai - então na mão de Alfredo Stroessner. Até recentemente, algumas das maiores democracias ofereciam-se para acolher tiranos depostos, seja para evitar um banho de sangue na terra "libertada", seja para penitenciar-se por ter escorado ditaduras em troca de estabilidade. A rebelião que hoje sacode o mundo árabe, em que cidadãos comuns se levantam contra ditadores patrocinados, põe em cheque essa última peça de realpolitik. Fica difícil defender sob a bandeira da ordem um aliado que ataca seu próprio povo com balas e bombas Made in USA.

Por essa e outras, a nova safra de ex-supremos ainda esperneia. O ditador da Tunísia, Zine al-Abidine Ben Ali, tentou ir à França, mas após o "non" de Nicolas Sarkozy teve de se contentar com Arábia Saudita. Hosni Mubarak pode seguir o mesmo caminho, mas o destino de Kadafi que ainda resiste entocado em Trípoli, é incerto.

O mundo está cada vez menos condescendente com brutalhões em fuga. Tribunais e tratados internacionais, ONGs de direitos humanos e juristas especializados em recuperar fortunas de cleptocratas foragidos fecham as comportas. A antes discreta Suíça não hesita mais em delatar o investidor bandido.

Hoje a Disneylândia dos ditadores inativos sofreu forte rebaixamento. Sobram como abrigo os países fora da lei que ignoram instituições e regras internacionais.

Será Venezuela o melhor destino para Kadafi? Afinidades não faltam. Como jovem paraquedista, Chávez decorou trechos do Livro Verde, o compêndio de pensamentos do líder líbio, esse adepto ao poder absoluto com véu islâmico e tempero anticapitalista. Ao eleger-se em 1998, Chávez fez do país do norte-africano seu maior aliado na Organização dos Países Exportadores do Petróleo. Kadafi correspondeu, dando ao líder do socialismo do século 21 o Prêmio Internacional Kadafi de Direitos Humanos em 2004. Cinco anos depois, Chávez devolveu a gentileza, regalando ao líbio uma réplica da espada de Simon Bolívar, herói da independência latino-americana.

Desde então, os elos só crescem. Chávez já visitou a Líbia cinco vezes e fala em estabelecer um voo direto entre Caracas e Trípoli. Mesmo agora, enquanto o ditador líbio bombardeava seus cidadãos, Chávez insiste que Kadafi seria vítima de um complô de americanos e europeus de olho no seu petróleo.

Mas com a popularidade de Chávez em queda, crime violento em níveis recorde e a maior inflação dos mercados emergentes, os venezuelanos estão cada vez menos tolerante aos rompantes do presidente. Talvez não partam a uma "intifada tropical", mas tampouco parecem dispostos a bancar outro coronel na berlinda.

É CORRESPONDENTE DA "NEWSWEEK", COLUNISTA DO "ESTADO" E EDITA O SITE WWW.BRAZILINFOCUS.COM