Título: Os países reais e as tribos com uma bandeira
Autor: Friedman, Thomas
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2011, Internacional, p. A22

Egito e Tunísia são Estados com história, um território e fortes identidades nacionais, já a Líbia é uma nação com fronteiras criadas que aprisionam uma miríade de tribos e seitas

David Kirkpatrick, o diretor da sucursal do The Times no Cairo, escreveu um artigo na Líbia, na segunda-feira, que levantava uma questão fundamental, não apenas a respeito da Líbia, mas de todas as novas revoluções que fermentam no mundo árabe. "A pergunta paira sobre o levante líbio desde o momento em que o primeiro comandante de um tanque desertou para unir-se aos seus primos que protestavam nas ruas de Benghazi: "A batalha da Líbia é o violento confronto de um ditador brutal contra uma oposição democrática, ou é fundamentalmente uma guerra civil tribal?""

Esta é a questão, porque no Oriente Médio existem dois tipos de Estados: os "países reais" com longas histórias, um território e fortes identidades nacionais (Egito, Tunísia, Marrocos, Irã); e os que podemos chamados "tribos sob uma bandeira", ou Estados mais artificiais com fronteiras traçadas em linhas retas pela pena das potências coloniais, aprisionando no interior destas fronteiras miríades de tribos e seitas que não só nunca se dispuseram a conviver, como também nunca se fundiram plenamente em uma família unificada de cidadãos. São eles a Líbia, Iraque, Jordânia, Arábia Saudita, Síria, Bahrein, Iêmen, Kuwait, Catar e Emirados Árabes Unidos.

As tribos e as seitas que constituem estes Estados artificiais permaneceram unidas durante muito tempo pela mão de ferro de potências coloniais, reis ou ditadores militares. Elas não têm "cidadãos" no sentido moderno. Ali, a rotatividade democrática no poder é impossível porque cada tribo se pauta pelo lema "governar ou morrer" - ou minha tribo ou seita está no poder ou nós estamos mortos.

Não por acaso, as rebeliões em nome da democracia no Oriente Médio começaram em três dos países reais - Irã, Egito e Tunísia - cujas populações são modernas, com grandes maiorias homogêneas que põem a nação antes da seita ou da tribo e têm uma confiança mútua suficiente para se unirem como uma família: "todo mundo contra papai". Mas como estas revoluções espalharam-se pelas sociedades mais tribais/sectárias, torna-se difícil perceber onde termina a busca de uma democracia e onde começa o desejo de que "minha tribo assuma o poder que está nas mãos da sua tribo".

No Bahrein, uma minoria sunita, 30% da população, governa uma maioria xiita. Existem muitos sunitas e xiitas bareinitas - os chamados sushis, que se fundiram por meio de casamentos intertribais - que têm identidades políticas modernas e aceitariam uma verdadeira democracia.

Guerra sectária. Mas há muitos outros bareinitas que consideram a vida como uma guerra sectária de resto zero, que inclui os expoentes da linha dura da família dos governantes al-Khalifa, que não têm nenhuma intenção de pôr em risco o futuro dos sunitas bareinitas sob um governo de maioria xiita. É por isso que no Bahrein os fuzis apareceram muito cedo: governar ou morrer. O Iraque ensina o que é necessário para democratizar um grande país árabe com várias tribos, uma vez expulso seu líder com mão de ferro (neste caso, por nós). São necessários bilhões de dólares, 150 mil soldados americanos para arbitrar a situação, miríades de vítimas, uma guerra civil em que cada parte precisa testar o poder da outra, e depois um processo muito doloroso, que nós ajudamos a criar, para que seitas e tribos iraquianas redijam sua própria Constituição, definindo como deve ser a convivência sem uma mão de ferro.

A realização mais importante dos Estados Unidos foi levar os iraquianos a redigir seu próprio contrato social. Na realidade, esta foi a experiência liberal mais importante da moderna história árabe, porque mostrou que mesmo as tribos com uma bandeira podem, teoricamente, realizar a transição do sectarismo para uma moderna democracia.

Mas esta é ainda somente uma esperança. Os iraquianos ainda não deram a resposta definitiva às suas indagações fundamentais: O Iraque é como é porque Saddam era como era ou Saddam era o que era porque o Iraque é como é: uma sociedade tribalizada?

Em todos os outros Estados árabes em que agora fermenta a revolta - Iêmen, Síria, Bahrein e Líbia - existe uma guerra civil em potencial como a do Iraque. Alguns talvez tenham sorte, e seu Exército possa se tornar o guia que os conduzirá para a democracia, mas não devemos confiar muito nisso.

Em outras palavras, a Líbia é apenas a etapa inicial de uma série de dilemas morais e estratégicos com os quais nos defrontaremos à medida que estes levantes árabes avançarem entre as tribos com bandeira.

Compreendo até o presidente Obama. Esta questão é complicada e eu respeito o desejo do presidente de impedir um massacre na Líbia. Mas precisamos ser mais cautelosos. O que tornou o movimento pela democracia no Egito tão poderoso foi o fato de o movimento ter sido engendrado pelos próprios egípcios. A juventude egípcia teve milhares de vítimas na luta pela liberdade. E nós deveríamos ser duplamente cautelosos antes de intervir em lugares que poderão entrar em colapso nas nossas mãos, como no Iraque, principalmente quando não sabemos, como no caso da Líbia, quem são na realidade os grupos da oposição - movimentos pela democracia liderados por tribos ou tribos que usam a linguagem da democracia? Por fim, infelizmente, não temos condições de patrocinar isso. Precisamos trabalhar para sanar os problemas do nosso próprio país. Se o presidente está disposto a tomar grandes decisões, decisões difíceis, urgentes, não as deveria tomar, antes de mais nada, para a construção de sua nação, os Estados Unidos, e não da Líbia? Não deveria ele criar primeiramente uma política energética real que enfraquecesse os Kadafis, e uma política orçamentária que garantisse o sonho americano para outra geração? Quando elas começassem a vigorar, eu seguiria o presidente "dos palácios de Montezuma às praias de Trípoli". / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

É COLUNISTA, ESCRITOR E GANHADOR DO PRÊMIO PULITZER