Título: A luta de Trichet para salvar o euro
Autor: Pauly, Christoph
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2011, Economia, p. B4

Perto de terminar o seu mandato à frente do Banco Central Europeu, o ''Senhor Euro'', como é[br]chamado, briga pelo futuro da moeda única europeia

Jean-Claude Trichet caminha apressado pelo 36.º andar da Eurotower, em Frankfurt. Várias autoridades aguardam na sala de conferência a chegada do presidente do Banco Central Europeu (BCE), hoje com 68 anos. Cada uma com um notebook verde à sua frente. Trichet entra e sorri ligeiramente. Cumprimenta cada um com um aperto de mão. Sobre a mesa, à frente da sua cadeira, uma pasta repleta de documentos.

Como primeiro item da pauta de discussão, o diretor geral de relações europeias repassou os compromissos de Trichet para os próximos dias. Depois, durante uma hora, foram discutidas as posições financeiras do BCE com os chefes das diretorias de economia e estabilidade financeira.

O "Senhor Euro", como é chamado na sede do BCE, está convencido de que, nas próximas duas semanas, haverá uma decisão sobre o futuro do euro. Afinal, a crise da moeda única não acabou. À medida que os dias passam, aumenta a probabilidade de Portugal ser obrigado a recorrer ao fundo de ajuda. Lisboa já está pagando juros a taxas superiores a 7% nas emissões de títulos soberanos.

Trichet enviou especialistas do BCE a Lisboa para assessorar o governo português. "Quando um grupo de especialistas do banco está numa missão oficial", diz o assessor de Trichet, Christian Thimann, "o chefe da delegação tem de se reportar a ele diariamente". Na sexta-feira da semana passada, o governo português anunciou que vai expandir seu programa de austeridade - uma boa notícia para o presidente do BCE.

Transgressões. Na segunda-feira, ministros das Finanças dos 17 países da zona do euro devem discutir a situação de Portugal e também analisar um reforço para o fundo de socorro financeiro do euro. Depois, em 24 e 25 de março, chefes de Estado e de governo da União Europeia se reunirão em Bruxelas para decidir como dividir o risco. Medidas disciplinares para os membros da zona do euro também serão decididas.

Afinal, a longo prazo, pacotes multibilionários de ajuda não serão de grande ajuda se não forem acompanhados por sanções. Na verdade, o desejo de Trichet é que países fortemente endividados sofressem sanções muito mais cedo. "Os Estados-membros têm de ser forçados a efetuar um pagamento após a primeira transgressão dos critérios e ser punidos por transgressões repetidas."

Embora o presidente francês Nicolas Sarkozy e a chanceler alemã Angela Merkel tenham anunciado o seu ineficaz "pacto de competitividade" em janeiro, as sanções contempladas no pacto de estabilidade vêm enfraquecendo nesse período que antecede a reunião de cúpula. Recentemente, Trichet advertiu os líderes do governo de que as propostas da Comissão Europeia, já excessivamente frágeis, se diluíram mais ainda.

"Queremos registrar nossa oposição a um afrouxamento das regras em todos os níveis", disse Jürgen Stark, economista-chefe do BCE. Nas reuniões dos ministros das Finanças da UE e nos encontros de cúpula, Trichet pretende ser anormalmente abrupto. Seus oito anos na presidência do BCE terminam em outubro e ele pretende lutar pelo trabalho da sua vida, o euro. E vem insistindo para serem adotadas sanções eficazes para compensar os bilhões de ajuda. Se os governos da zona do euro não decidirem apoiar essas sanções, ele disse que fará um apelo direto aos membros do Parlamento Europeu quando for a Bruxelas, em duas semanas.

"Francês germânico". Jean-Claude Trichet não gosta de fazer as coisas pela metade. Seu comportamento levou um membro da diretoria do BundesBank, o banco central alemão, a chamá-lo de "o francês germânico". Trichet também vai ter de defender sua posição no Conselho do BCE, órgão decisório supremo do banco, que inclui os dirigentes dos bancos centrais dos 17 países da zona do euro e os seis membros da diretoria executiva. As discussões prometem ser exaustivas. "Todos se consideram implicados e envolvidos", diz o presidente de saída do BundesBank, Axel Weber.

Mas o Conselho não é um clube de discussão, e sim um órgão que precisa tomar decisões a cada duas semanas. Na mais recente reunião, Trichet defendeu um aumento das taxas de juro. A inflação subiu para 2,4% e ele está preocupado, mesmo que o Federal Reserve americano e o Banco da Inglaterra considerem tratar-se de efeito excepcional. "De acordo com o Tratado da UE, a estabilidade de preços é nossa máxima prioridade. E é também o que os cidadãos da Europa esperam de nós."

No fim de uma recente reunião do Conselho do BCE, Trichet resumiu o que vem sendo afirmado e propôs a elevação da taxa de juro. "É preciso alguém com autoridade firme para comandar uma diretoria tão heterogênea", diz Jürgen Stark, que estabelece as bases para as decisões com suas análises econômicas. Segundo ele, as crises aumentaram o carisma e o poder de Trichet.

O fim da inocência. De fato, Trichet só teve um grande fracasso ao tentar um consenso no Conselho. Em 9 de maio de 2010, o Conselho votou a favor de que se começasse comprar títulos soberanos de Estados-membros da zona do euro muito endividados. Para os críticos da decisão, aquele foi o momento em que o BCE "perdeu sua inocência".

O presidente do BundesBank, Axel Weber, votou contra e fez questão de que o público ficasse a par disso. Na verdade, seu receio quanto à estratégia era tão forte que, no final, ele anunciou que renunciava ao cargo, e também se retirou da disputa pela sucessão de Trichet no BCE. Numa entrevista ao Spiegel, em fevereiro, Axel Weber disse que suas posições "podem nem sempre ter ajudado a que ele fosse mais aceito, como indivíduo, por alguns governos".

No BundesBank, o que se fala é que Trichet estava sob pressão do presidente Sarkozy. Nos dias que precederam esse fim de semana de maio, os mercados financeiros começaram a apostar não só contra os membros da zona do euro, individualmente, mas contra o próprio euro. Trichet conseguiu convencer os chefes de governo da União Europeia a aprovar um pacote de socorro financeiro de bilhões de euros; mas, nesse caso, ele também forçou a mão.

Um pouco antes, à margem de uma reunião da UE em Lisboa, o Conselho do Banco Central Europeu fez declarações informais sobre a possibilidade de compra de títulos soberanos de países em dificuldade. Naquele fim de semana de maio, numa teleconferência com seus colegas do BCE, Trichet apoiou a compra. Uma estratégia de longo prazo para conter os especuladores precisa ser encontrada, afirmou, para evitar um desastre na segunda-feira, quando as bolsas começassem a funcionar.

Weber versus Trichet. Dessa vez, contudo, Axel Weber e um grupo formado por outros membros do Conselho do BCE não seguiram seu presidente. Embora Trichet tenha afirmado que uma "maioria esmagadora" de membros aprovara a compra de títulos, um membro da diretoria executiva disse que quatro integrantes do Conselho se aliaram a Weber e votaram contra. Mas outros executivos negaram veementemente que houvesse tantos dissidentes - sinal de como é sensível essa questão numa instituição orientada para o consenso.

"Na época, tivemos de adotar uma decisão necessária", é o que diz Trichet hoje. Mas o presidente do BCE está ciente de que esse caso ofuscou seu mandato. A partir daí, o BCE adquiriu 77 bilhões de títulos soberanos, principalmente da Grécia, Irlanda e Portugal. Essa foi uma das razões pelas quais os BCs da Europa tiveram de aumentar drasticamente o valor dos fundos de proteção contra riscos. Em consequência, os lucros do BundesBank caíram de 4,1 bilhões para 2,2 bilhões em 2010.

Trichet está determinado a não se envolver em situação idêntica de novo. Na verdade, ele gostaria de suspender imediatamente as compras de títulos. "Como todas medidas especiais, esta é apenas temporária."

Já em 2005, Trichet alertou para a dívida excessiva dos Estados-membros, quando o chanceler alemão Gerhard Schroeder e o presidente francês Jacques Chirac se juntaram para promover emendas ao Tratado de Maastricht, permitindo que os membros da zona do euro assumissem maior dívida soberana. "Esta foi a raiz de todos os males", disse ele.

Já que países maiores continuavam a fazer dívidas, os países menores também podiam, sem incorrer em nenhuma penalidade por isso.

Alertas repetidos. Trichet advertiu muitas vezes os chefes de governo da zona do euro. Em carta enviada em meados de fevereiro, ele criticou a Comissão Europeia por não estabelecer sanções automáticas quando os limites para as dívidas eram transgredidos. Em 3 de março, quando anunciou que o BCE pode elevar a taxa de juro em abril pela primeira vez desde o início da crise financeira, Trichet foi contra o que considera tentativas de reforma excessivamente cautelosas. Da mesma maneira, ele acha que o pacote de ajuda a países com problemas deve ser ampliado. Cada bilhão adicional vindo dos Estados-membros da UE, afirmou, diminuirá a probabilidade de intervenção do BCE.

Numa reunião de chefes de governo da zona do euro, na sexta-feira passada, Trichet insistiu para que o fundo de socorro financeiro da União Europeia, o European Financial Stability Facility (Mecanismo de estabilização financeira da Europa), aumente sua capacidade de empréstimo de 250 bilhões para 440 bilhões.

O BCE também gostaria que fosse criado um fundo de ajuda permanente, de 500 bilhões, com condições rígidas - e também é favorável a que os países com dívidas pesadas tenham permissão para comprar de volta a própria dívida com a ajuda da UE. Embora o Conselho do BCE ainda precise dar uma posição final, a maioria dos seus membros aprovaria a medida, segundo fontes do banco.

Conta alta. Axel Weber, mais uma vez, não está de acordo. "A compra de títulos no mercado secundário tem potencial para corroer a condicionalidade imposta pelo fundo de estabilidade." Em outras palavras, se países como a Grécia puderem usar o dinheiro de países da zona do euro com contas fiscais saudáveis para comprar os próprios títulos, então há pouca necessidade de reforma.

Economistas como Axel Weber qualificam essa perspectiva como "risco moral". E essa é uma preocupação também do governo alemão, que ele expressou como seu conselheiro. Mas provavelmente não conseguirá convencer outros membros do Conselho do BCE a seguirem sua posição.

Mas Trichet conseguirá vencer esta batalha? Muitos administradores de fundos acham que não. Os rendimentos de alguns títulos gregos saltaram para 18%, pois os mercados entendem que uma reestruturação da dívida grega é iminente.

Tendo passado anos conduzindo negociações para aliviar a dívida de países em desenvolvimento, no âmbito do Clube de Paris, Trichet alerta contra o efeito dominó - primeiro a Grécia, depois Irlanda, ou Portugal, e diz que os especuladores têm de ser rapidamente controlados.

A fatura, porém, é alta - e terá de ser paga por países como a Alemanha. Mas o Banco Central Europeu e seu presidente sentem-se obrigados a atender aos interesses de todos os europeus. E orientar o governo alemão é tarefa do BundesBank. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO