Título: Médico chora ao lembrar das vítimas que não conseguiu salvar
Autor: Kasinof, Laura ; Shane, Scott
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2011, Internacional, p. A14

Benghazi, Líbia

Como cirurgião do Centro Médico de Benghazi, Ezedin Bosedra, de 34 anos, já tinha visto muita coisa. Mas as três últimas semanas são indescritíveis para ele. Bosedra interrompe várias vezes seu relato ao Estado para chorar. Ele viu morrer nas suas mãos crianças e adolescentes, tratou de combatentes rebeldes e salvou a vida de soldados das forças leais a Muamar Kadafi, até ser perseguido por elas, tendo de fugir de Ajdabiya.

Há três semanas, ele foi com cinco médicos para Brega, onde ocorreu a primeira batalha entre mercenários e rebeldes. De lá, foi para Ras Lanuf, cenário de um combate que durou uma semana. Foi Bosedra quem recebeu os sobreviventes do bombardeio ao casario de Bisher. Duas casas e um carro foram atingidos pelos foguetes. O médico chora ao se lembrar de um bebê com o cérebro de fora. "Lá não havia combatentes, só famílias."

Em Ras Lanuf, Bosedra teve o primeiro contato com as forças de Kadafi. O soldado se chamava Mohamed e era de Hisha. O médico emprestou seu celular para que ele ligasse para a mãe. O soldado chorou e pediu desculpas, Disse que seu comandante lhes havia dito que iam salvar civis de um cerco rebelde. Nos dias que se seguiram, parentes de Mohamed continuaram ligando para o celular de Bosedra. Duvidavam: se ele estava em mãos rebeldes, como poderia ter sido salvo? "Eles assistiam na TV estatal que estávamos matando todo o mundo", recorda o médico.

Bosedra estava no grupo dos 15 médicos que tiveram de sair às pressas do hospital de Ras Lanuf, alvo de foguetes durante várias horas, no dia 10. "Acho que não queriam que nós médicos sobrevivêssemos, porque vimos coisas demais."

No hospital de Ajdabiya, ele testemunhou a destruição completa de dois bairros residenciais. Segundo o médico, 55 pessoas morreram no local. Ele conta que era o único cirurgião experiente da equipe e o único que podia conduzir operações. Por isso, teve de transferir um combatente ferido por estilhaços de foguete no abdome para Benghazi, enquanto operava outro paciente. Ele chora ao contar que a ambulância levando o ferido foi parada numa barreira. Retiraram o ferido do veículo e o executaram. Outro ferido menos grave foi arrancado de outra ambulância e levado preso.

Em Ajdabiya, quando operava um homem cujo abdome foi dilacerado por estilhaços, um foguete atingiu o hospital. Com o impacto da explosão, seus intestinos saltaram para fora e o homem morreu.

Na segunda-feira, a direção do hospital ordenou que os médicos voltassem para Benghazi, porque havia a informação de que as forças de Kadafi viriam buscá-los. Bosedra e sua equipe vieram em cinco ambulâncias, com seis feridos, incluindo uma adolescente cuja casa foi atingida por um foguete, matando sua mãe e ferindo sua perna direita, que teria de ser amputada. "Não pude fazer nada por ela."