Título: Metade da Costa do Marfim atribui deposição à França
Autor: Andrei Netto,
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2011, Internacional, p. A9

Chegam ao fim os quatro meses de caos que o inverossímil tirano Laurent Gbagbo criou para a indignação do mundo inteiro. Ontem, a Abidjã libertada era uma cidade morta: incêndios, destruições, cinzas e sangue. Os cadáveres não recolhidos enchem há muitos dias as ruas da cidade.

Como não se alegrar com o desfecho desse drama barroco? Mas, ao mesmo tempo, como não temer pelo futuro dessa alegria? Os dois campos já se dilaceram sobre a maneira como a saída de Gbagbo foi obtida. No campo do vencedor, Alassane Ouattara, as coisas estão claras. Foram as Forças Republicanas da Costa do Marfim (FRCI, na sigla em francês), isto é, o Exército legalista de Ouattara, que desalojaram Gbagbo. O Ministério das Relações Exteriores francês, o embaixador da França no país e a ONU confirmaram essa versão dos fatos.

Para o campo de Gbagbo, tudo isso não passa de mentiras e veneno: foram as "forças especiais francesas" que deram o golpe final no presidente derrotado. É fato que os franceses haviam submetido a residência de Gbagbo a um dilúvio de bombas e mísseis. Os últimos defensores de Gbagbo denunciavam: "A França assassina o chefe do Estado marfinense." É preciso lembrar que Gbagbo recebeu quase tantos votos quanto seu adversário, e vencedor. Em outras palavras, metade da população está convencida de que foi a França, apoiada pelos ocidentais, que expulsou Gbagbo. E pode-se contar com os fanáticos de Gbagbo para trombetear, não somente na Costa do Marfim, mas em toda a África, a fábula de que foi a França que lançou seus soldados, que fez correr o sangue dos africanos.

Seria o caso, para evitar as acusações de neocolonialismo, de assistir ao sofrimento marfinense sem se mexer, sem levar ao campo do legítimo vencedor das eleições, Alassane Ouattara, o apoio logístico, e por vezes, armado da França? Poderíamos ficar impassíveis ante o terror que as milícias de Gbagbo infligiam a Abidjã? Para matizar um pouco o quadro, não se deve esquecer que o campo de Ouattara também cometeu massacres tão odiosos quanto os de Gbagbo. A França optou pelo risco e a generosidade. Amanhã mediremos os efeitos desse engajamento e se ele foi positivo ou desastroso. Hoje só podemos deplorar que o Exército que permitiu, com a anuência da ONU, fazer triunfar a legalidade seja o Exército da antiga potência colonial. / TRADUÇÃO DE CELO M. PACIORNIK

É CORRESPONDENTE EM PARIS