Título: A democratização possível na Síria
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2011, Internacional, p. A9

Damasco precisa evitar o sectarismo vivenciado pelo Iraque e inspirar-se em reformas políticas como a protagonizada pela África do Sul na década de 80

Na Síria, o movimento em favor da democracia levou imensas multidões para as ruas, desafiando o Partido Baath do país, no poder há 48 anos. Mais de 200 pessoas já foram mortas nos confrontos entre manifestantes e as forças de segurança. Poderá a Síria realizar a transição para a democracia sem batalhas sangrentas como as que vemos agora na Líbia, e com a repressão no Bahrein?

Sim, desde que haja no país um número suficiente de líderes dotados de visão e comedimento, e estejam abertos a uma mediação externa. A alternativa provavelmente será uma espiral rumo ao sectarismo, a uma maior violência e à divisão social e política.

Trata-se de uma perspectiva terrível para os 22 milhões de habitantes sírios e para todos os seus vizinhos. Eles sabem que o Iraque vivenciou o sectarismo após a derrubada de Saddam Hussein, em 2003, pois hospedaram mais de um milhão de refugiados iraquianos. Então, de que maneira poderão pessoas vindas de fora ajudar a Síria a realizar um progresso concreto e acelerado rumo à democracia sem correr o risco do sectarismo? Convencendo a minoria que detém o poder a afrouxar o punho.

Devemos compreender que, na Síria de hoje, assim como no Iraque antes de 2003, o governo de partido único do país tem uma realidade mais profunda: o domínio quase total exercido por uma minoria demográfica.

No Iraque, a minoria era composta por árabes sunitas. Na Síria, são os alauítas que constituem uma parcela menor ainda da população - menos de 13% - enquanto uma nítida maioria de sírios é composta de sunitas. A sociedade abrange também cristãos árabes e curdos, além outros grupos minoritários. Um grande desafio, como aconteceu no Iraque pós-Saddam ou na África do Sul antes da instalação da democracia, é persuadir a minoria que detém o poder a afrouxar seu domínio e caminhar a passos acelerados para o sistema no qual "cada pessoa representa um voto".

Um desafio igualmente difícil é persuadir os membros (quase sempre revoltados e vingativos) da maioria a se manterem abertos a todos e a serem generosos no caminho que os levará à conquista do seu objetivo democrático.

África do Sul. Não será fácil encontrar pessoas de visão para realizar esta tarefa. Os sírios precisam de um Nelson Mandela e de um Frederick de Klerk que, como na África do Sul do apartheid, sejam capazes de negociar um itinerário da Síria para a democracia.

Durante a transição, em grande parte pacífica da África do Sul, cada um dos dois líderes tinha o apoio de um movimento amplo e totalmente operante. O acordo de democratização foi um pacto entre dois grandes movimentos, e não apenas entre dois homens. Na Síria, é difícil imaginar a minoria do Partido Baath apoiar uma abertura para os líderes da comunidade da maioria sunita. Talvez seja mais difícil identificar líderes no movimento pró-democracia capazes de persuadir a população majoritária do país a apoiar um acordo que inclua minorias alauíta e baathistas.

Na África do Sul, nos anos 80, era igualmente difícil imaginar que "brancos" e "negros" chegariam a um acordo. A transição sul-africana - sem o temido banho de sangue - representa um grande exemplo de como esta mudança pode se realizar pacificamente.

Um outro país que poderia ajudar, intermediando as negociações, é a Turquia. Os países têm em comum 1.300 quilômetros de fronteira. É uma nação democrática, de maioria sunita, governada por um partido islâmico moderado. Além disso, é uma potência econômica emergente, e seus líderes mantêm boas relações com o governo e com o público sírio. A Turquia é membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e conseguiu que seus militares, outrora propensos ao golpe de Estado, parassem de interferir na política civil.

Que papel poderiam exercer os EUA? Em primeiro lugar, Washington deveria apoiar o plano de um caminho negociado, e não violento, para a democracia. Em segundo lugar, deveria impedir que Israel interferisse neste processo. Os sírios continuarão sua campanha para a devolução das Colinas do Golã, ocupadas por Israel desde 1967. Washington deveria apoiar um acordo de "terra em troca da paz" entre os dois países.

A criação de uma democracia firme exige mais do que uma ou duas eleições. São necessárias instituições sólidas e um compromisso com um futuro comum. Acima de tudo, isso tem a ver com o respeito pela ideia de que até as mais profundas divergências políticas devem ser resolvidas mediante deliberações e negociações, e não pela violência. / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

É AUTORA DE LIVROS SOBRE AS NEGOCIAÇÕES SÍRIO-ISRAELENSES E A DEMOCRATIZAÇÃO DA ÁFRICA DO SUL

--------------------------------------------------------------------------------