Título: Tratado deixa de ser intocável quando é preciso
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/04/2011, Internacional, p. A10

Princípios básicos para a formação do bloco europeu acabam suprimidos ou ignorados sempre que há dificuldades, seja financeira ou imigratória

Há 50 anos, a Europa unida era uma ideia excelente. O Velho Continente seria despojado de todas as cicatrizes após 2 mil anos de história e guerras. As pessoas tomariam o trem em Lisboa e chegariam a Praga, Londres, ou Varsóvia, sem observar um policial ou um agente aduaneiro.

Hoje, descobre-se que o "paraíso terrestre" é muito complicado e não é sempre que funciona. Dois meses atrás, quando começaram as revoluções "democráticas" no Norte da África, os europeus se alegraram. Triunfo do estado de direito. Mas, alguns dias depois, muitos "democratas árabes" da Tunísia fugiram e desembarcaram na Itália.

O governo italiano não ficou contente. Tentou mandar todos esses "democratas" (que alguns chamam também de "imigrantes" ou "sem documentos") para a vizinha França. que não gostou. A dificuldade é que a União Europeia criou, há alguns anos, o Espaço Schengen, instituição que aboliu as fronteiras entre uma grande parte dos países da UE. Portanto, os imigrantes tunisianos que inundaram a Itália tinham o direito de seguir para a França.

França e Itália se desentenderam. O presidente Nicolas Sarkozy e o premiê Silvio Berlusconi se desafiaram como galos de briga. Hoje, eles dizem que valeria mais se entenderem. E se entenderam à custa de quem: da União Europeia. Eis, em poucas palavras, as bases do seu acordo: o Espaço Schengen (essa zona livre de barreiras) poderia ser abolido temporariamente em caso de necessidade, segundo o desejo da França. Em contrapartida, a Itália pedirá à UE para reforçar as barreiras exteriores da Europa. Seriam colocados por toda parte agentes aduaneiros, policiais, cães ferozes, computadores, navios de guerra, para rechaçar os imigrantes africanos ou orientais que quiserem entrar em quantidade na "sacrossanta" Europa.

Assim, a crise atual se resolverá violando de duas maneiras os princípios da UE: restabelecendo os "arames farpados" no coração da Europa e suspendendo, se necessário for, o Espaço Schengen. Serão instaladas todas aquelas barreiras fabricadas ao longo de dois milênios de tragédias que os "pais fundadores" da UE haviam sonhado eliminar.

Claro, a inundação de imigrantes da Tunísia e, amanhã, da Líbia, não poderia ser aceita por Itália e França. Nesse ponto, compreende-se muito bem Berlusconi e Sarkozy. O que nos preocupa é outra coisa: por uma lógica implacável, a UE se desconstrói ao longo dos anos. Quando um dispositivo dito intocável do tratado da UE se revela perigoso ou impróprio, decidem suprimi-lo.

Por exemplo, um dos pilares do Tratado de Maastricht era que o déficit de um país não devia passar de 3% de seu PIB, e hoje cada país cava abismos de déficit e nem sonha em pedir desculpas. E a diplomacia comum da Europa? Um sonho. Se continuarmos nesse ritmo, o que restará, dentro de algumas décadas, da esplêndida União Europeia? Uma esplêndida lembrança. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK