Título: Imigrantes enfrentam fim do sonho europeu
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2011, Internacional, p. A18

Onda de refugiados causada pelas revoltas na Líbia e na Tunísia leva países do continente a pedir revisão de acordos de livre circulação

Da janela de seu quarto no centro de acolhimento para imigrantes irregulares em Ventimiglia, Sami vê todos os dias trens repletos de carros novos da Fiat sendo transportados para serem vendidos na França. "O fluxo de carga pela Europa funciona perfeitamente, sem barreiras", comentou o imigrante e ex-estudante de direito em Túnis. "Pena que o mesmo princípio não se aplique às pessoas", lamentou.

Antonio Parrinello/ReutersClandestinos. Tunisianos aproximam-se da ilha italiana de Lampedusa; Itália e França vão monitorar o Mar Mediterrâneo para conter imigração Depois de décadas de construção de um continente sem barreiras internas, a guinada política da Europa à direita fez com que a UE voltasse a falar abertamente pela primeira vez em meio século em reerguer fronteiras. A pressão por novas barreiras aos imigrantes era latente, principalmente diante da crise econômica dos últimos três anos. Mas foi a chegada de 25 mil refugiados da Tunísia e Líbia que deu a oportunidade para que governos lançassem propostas oficiais de revisão de um dos pilares da UE - a livre circulação de pessoas.

A crise começou quando a Itália alegou que não poderia lidar com o fluxo de estrangeiros vindo desses países. Roma apelou para que os demais países europeus, principalmente a França, recebessem parte dos imigrantes, muitos deles de língua francesa. Então, foi a vez de Paris fechar suas fronteiras, deixando centenas na cidade fronteiriça de Ventimiglia há semanas.

Nesse ponto do continente visitado pelo Estado, entre montanhas e o Mar Mediterrâneo, a UE não existe como uma realidade política. Nem como um local de valores compartilhados. Os direitos humanos também parecem ter sido suspensos, com imigrantes comendo apenas pão, maçã e água.

Rejeitados pelos governos, esses imigrantes acabaram em "centros de acolhimento" - verdadeiras prisões a céu aberto. Os que não encontram lugar, dormem em praças, na estação de trem e perambulam pela praia há semanas, sem destino.

"Nem os 50 anos de história do bloco são suficientes para apagar as fronteiras quando elas são convenientes, especialmente para frear estrangeiros", afirmou Ezzedine Said Ahmed al-Asbahi, ativista de direitos humanos na Tunísia.

Vistos com suspeita pela população e abandonados pelos governos, muitos lamentam ter tomado a decisão de migrar. Vivem como mendigos e alimentam-se apenas do pouco que as entidades oferecem.

"Eu seria advogado em meu país. Agora, não sou nada", disse Sami. "Outro dia consegui ligar para minha mãe. Tive de dizer que estava bem e logo iria trabalhar. Como é que vou dizer agora que deu tudo errado?" De sua janela, ele não vê apenas o fluxo de trens de carga, mas também pode ler uma frase escrita em um muro: "Imigrantes sujos, voltem a seus países".

Ibrahim Chakroun é um dos muitos jovens que foram às ruas derrubar o regime de Ben Ali na Tunísia. Mas agora descobre que não é nada na Europa, indesejado e sem direito. O jovem de 25 anos dorme na estação de Ventimiglia há 43 dias. "Estou contando, para um dia pedir compensação", disse, exausto.

Enquanto falava, mais um trem com 200 imigrantes vindo de Roma chegava a Ventimiglia. Eram 4 da manhã. "Coitados, não sabem o que lhes esperam", afirmou Ibrahim, sobre os refugiados que eram retirados do trem à força por policiais armados.

"O dia em que eu sair dessa fronteira, vou a um hospício me tratar", contou Karim, que dorme com seu primo Ahmed todas as noites na estação. "Isso é o inferno na terra", disse.

A revisão do tratado de livre circulação, se de fato ocorrer, terá um impacto que vai bem além dos imigrantes do Magreb. Búlgaros e romenos, apesar de fazer parte da UE, até hoje não podem circular livremente pela Europa e já temem que a revisão signifique que só serão cidadãos de primeira classe em meados da década.

Brasileiros. A comunidade latino-americana e brasileira também já se preocupa com a possível volta das fronteiras. Na prática, a existência do acordo permitia que um brasileiro vivendo irregularmente na Europa também pudesse circular entre os países da região, sem ser pego por policiais e extraditado.

Assim, muitos tentam entrar na Europa pelos aeroportos de Madri e Lisboa, para depois chegar a França e Alemanha. Um eventual controle de fronteiras significaria que essa mobilidade estaria limitada aos brasileiros. Dóris é uma dessas imigrantes brasileiras que seguiu esse percurso e hoje está preocupada. "Tenho dois irmãos na Bélgica e eu vivo em Lisboa. Sempre nos vemos nos feriados. Mas, se voltar a haver um controle nas fronteiras, não vou poder mais viajar. Não vou arriscar", disse a mineira, que prefere não revelar o sobrenome.

Pedro Guimarães, de Campinas, é outro que usou o fato de não haver mais fronteiras na Europa para conseguir trabalho. Ele morou por quase dez anos em Barcelona, até ser prejudicado pela pior crise econômica da Espanha em décadas. Perdeu o trabalho. Mas viajou até Stuttgart e hoje trabalha de novo, em uma obra.

Para ONGs de direitos humanos e especialistas, a volta das fronteiras tem uma ligação estreita com o fato de partidos de extrema direita terem usado a imigração e o medo como armas eleitorais. Em países como a Bélgica, Áustria, Hungria, Finlândia, Irlanda, Suécia, Suíça, Holanda e Itália, partidos de extrema direta deram um salto enorme nos últimos anos e conquistaram lugares importantes em seus Parlamentos nacionais e mesmo na formação de governos.

O caso que mais surpreendeu a Europa foi a eleição na Finlândia, há duas semanas. O partido Verdadeiros Finlandeses ganhou o voto de quase um quinto da população e acabou conquistando 39 cadeiras no Parlamento, incluindo a direção da Comissão de Relações Exteriores. O país, conhecido por suas políticas socialistas, sofreu uma importante revolução interna e a extrema direita venceu com o discurso de que a imigração ameaça o bem-estar do país.