Título: Convivência da turma foi pacífica
Autor: Vieira, Márcia
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2011, Vida, p. A24/25

O discurso de Monique Barreto Santana na formatura deu o tom da união da turma. "Já na pré-matrícula a gente não se estranhou", começou, diante da plateia lotada de uma casa de eventos no Recreio do Bandeirantes, na zona oeste. Lembrou que eles chegavam à faculdade de carro, ônibus ou no "nada suave balanço de um trem". "Mais que por uma faculdade, por uma profissão, estamos unidos pelo privilégio que é fazer do cuidado ao próximo o exercício diário de nossas vidas."

Monique, negra, cotista e uma das melhores alunas da sala, foi eleita oradora da turma de Medicina da Uerj 2010, apesar de a maioria dos alunos não ter entrado pelo sistema de cotas. Antes dela, Flávia Nobre, também cotista, tinha mostrado seu prestígio entre os colegas. Fora escolhida como representante de turma no primeiro ano. "Nunca mais me deixaram sair do cargo. Fiquei até o último ano", conta.

A escolha das duas mostra que a convivência, ao menos entre os alunos, foi pacífica. Mesmo com os que eram declaradamente contra as cotas. "Não concordo com elas nem com os critérios. Sou terminantemente contra cota para negro e não é porque eu sou branco", diz Felipe Bessa, que terminou a faculdade com média 8. Bessa é amigo de vários cotistas negros da turma. Mais que isso. Admira especialmente Monique e Thiago Peixoto. "Eles são negros, cotistas e excelentes médicos. São tops da turma", atesta Bessa. "Aqui, negro, branco, pobre e rico convivem numa boa."

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Modelo. Flávia nunca sentiu na pele preconceito. Mas reconhece que não se enquadra no protótipo do cotista. "As pessoas pensam logo que cotista é negro e pobre. Eu sou branca, falo bem, me visto direitinho." Por isso, ao longo dos seis anos, fez questão de dizer para todo mundo que era cotista. "Era uma forma de quebrar o preconceito." Filha de um motorista de táxi e uma dona de casa, passou para residência em cirurgia geral na Uerj. Comprou poucos livros. Estudava na biblioteca, fazia xerox, pegava livro emprestado com veteranos. "Foi muito sacrifício para o meu pai me manter na faculdade."

Thiago Peixoto, paulistano, filho de caminhoneiro, ainda paga dívidas no banco, contraídas ao longo do curso. Calcula que em mais um ou dois meses vai conseguir zerar as dívidas. Peixoto ganha R$ 2,2 mil na residência em clínica geral na Uerj. Com os plantões de 12 horas aos sábados na UPA, consegue mais R$ 2,5 mil. "Para médico não falta emprego."

São tantas as ofertas de plantões que Monique não atende mais o celular. Ela faz residência de clínica geral na Uerj e dá plantão aos sábados. Em janeiro, trabalhou sem parar para pagar a dívida de R$ 2 mil da formatura.

Monique quer ser cardiologista. Para isso, terá de passar em outra prova dificílima, após terminar a residência em clínica no fim de 2012. Até agora não enfrentou no atendimento aos pacientes constrangimento por ser cotista e negra. "O paciente que me perguntar se eu sou cotista o fará porque sou negra. E não querer ser atendido por uma médica negra é preconceito. Cabe processo."