Título: Modelos de mercados perfeitos criaram falsa segurança e contribuíram para crise global
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2011, Economia, p. B11

Segundo Kenneth Rogoff, de Harvard, o desafio agora é incluir as imperfeições do mercado financeiro nos modelos utilizados por economistas e bancos centrais

Entrevista - Kenneth Rogoff

No início de abril, o economista Kenneth Rogoff, da Universidade de Harvard, participou de um encontro com o nome instigante de "Crise e Renovação: Economia Política Internacional na Encruzilhada", organizada pelo Instituto para o Novo Pensamento Econômico (Inet, na sigla em inglês), patrocinado pelo bilionário e megainvestidor George Soros. O seminário, que visava discutir as transformações no pensamento econômico depois da crise global, foi realizado no mesmo hotel em que aconteceu o histórico encontro de Bretton Woods de 1944, no qual foi desenhada a arquitetura financeira internacional do pós-Guerra.

Ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), e um dos economistas mais prestigiados da atualidade, Rogoff é o autor, junto com Carmen Reinhart, do livro Oito Séculos de Delírios Financeiros: Desta Vez é Diferente, que faz um levantamento de 800 anos de crises econômicas e financeiras, e é considerado um marco na literatura econômica pós-crise global.

Apesar de ser um economista que frequentemente se posiciona a favor da ortodoxia, Rogoff critica com firmeza os modelos econômicos que pintam um mundo de mercados perfeitos, e nos quais não existem as imperfeições do sistema financeiros, que criam bolhas como a que causou a recente crise global. Ele acha, inclusive, que esse tipo de pesquisa acadêmica contribuiu para que as autoridades econômicas fechassem os olhos para a imensa bolha financeira e imobiliária que se irradiou pelo mundo rico, a partir dos estados Unidos.

Rogoff defende um novo papel para os BCs, em que a vigilância sobre as bolhas se some à atividade tradicional de controlar a inflação. Mas ele avisa que não vai ser nada fácil, já que a tendência histórica, detectada em Desta Vez é Diferente, é de que as autoridades relaxem ainda mais as regras em tempos de euforia. A seguir, a entrevista:

A crise econômica global e a Grande Recessão derrubaram pontos importantes da macroeconomia?

Sim. A crise minou uma ferramenta importante e central: os modelos macroeconômicos que tanto economistas como gestores de bancos centrais utilizam. Esses modelos pressupõem um grau muito alto de desenvolvimento financeiro, tangenciando a perfeição. Eles pressupõem que os mercados financeiros funcionam de forma muito eficiente e perfeita, num sentido muito profundo. E tipicamente se pressupõe que todas as fricções, todas as imperfeições, estão no mercado de bens e de trabalho.

Houve uma idealização do funcionamento dos mercados?

Sim. No extremo, por exemplo, (Finn Erling) Kydland e (Edward) Prescott ganharam o prêmio Nobel (de 2004) pela sua teoria do ciclo de negócios (ciclo econômico) real, que essencialmente pressupõe que tudo é perfeito na economia, que nós vivemos num mundo de absoluta eficiência. Um mundo no qual não existe nenhum monopólio, nenhuma imperfeição financeira, não há nem mesmo imperfeições no mercado de trabalho. É muito bonito, mas é profundamente oco em termos empíricos.

E por que os modelos macroeconômicos em geral partem de pressuposições irrealistas?

O problema é que, quando você quer olhar para modelos mais complexos, tudo rapidamente se torna muito mais complicado. O que nós realmente entendemos em Economia, num nível profundo, e o que dá base a todos os nossos modelos, é que a demanda é igual à oferta. E, se não for, o preço se move até que a demanda fique igual à oferta. Bem, a crise financeira, o desemprego, e diversas outras coisas acontecem porque os preços não se movem para fazer com que a demanda se iguale à oferta. Quando os salários são muito altos, as pessoas ficam desempregadas. E, dessa forma, o preço não cai imediatamente para tornar a demanda igual à oferta. E, assim que a demanda não se iguala à oferta, nós economistas ficamos impressionantemente sem ferramentas, e não sobra muito nos modelos matemáticos.

A confiança nesses modelos foi uma das causas da crise global?

Acho que sim, porque eles deram uma sensação falsa de segurança. O Alan Greenspan (ex-presidente do Federal Reserve, Fed, banco central americano) saiu por aí dizendo para todo mundo para não se preocupar com todos aqueles derivativos (operações financeiras) complexos porque, na verdade, eles estavam tornando os mercados financeiros mais eficientes. Eles estavam aproximando o mundo real e os mercados financeiros do mundo idealizado de Robert Lucas (prêmio Nobel de 1995) de Kydland, de Prescott, de (Kenneth) Arrow (prêmio Nobel de 1972) e (Gérard) Debreu (prêmio Nobel de 1983)e de todos os seus maravilhosos modelos canônicos.

Como isso aconteceria?

Ele disse que (os derivativos) estavam apenas movendo os mercados financeiros na direção certa, estavam ajudando a pulverizar o risco, a tornar o mundo mais seguro, menos volátil e menos arriscado. Greenspan estava pensando em termos dos modelos acadêmicos convencionais, e não em termos de modelos nos quais existe má informação, e nos quais as pessoas trapaceiam, não pagam o que devem. A história mostra que esse tipo de coisa acontece sempre. Aliás, antes da crise, havia toda uma indústria de análises sobre a Grande Moderação, e por que ela estava acontecendo.

O sr. poderia explicar melhor o conceito de Grande Moderação?

A Grande Moderação era a ideia de que, graças a melhores mercados financeiros, à melhor política monetária e à globalização, o mundo tinha se tornado um lugar menos volátil, no qual as crises eram menores. Assim, o consumo, a produção e todas as variáveis macroeconômicas, e particularmente o desemprego, também eram menos voláteis. Esse mundo mais seguro, por outro lado, poderia crescer mais rápido, devido ao fato de que havia essa maior segurança. Mas a Grande Moderação foi uma total ilusão.

Os economistas tiraram as lições certas da crise?

É cedo demais para dizer. A maior parte dos macroeconomistas mais velhos continuou a fazer exatamente o mesmo trabalho que fazia antes, sem nenhum sentido de autoconsciência. Porém, se você olhar os pesquisadores mais jovens, entre vinte e tantos e trinta e poucos anos, eles estão dispensando totalmente os velhos modelos e buscando algo novo.

E o que há de novo?

Entre os jovens pesquisadores, está todo mundo tentando introduzir (nos modelos macroeconômicos) fricções e imperfeições do mercado financeiro, de uma maneira construtiva. Mas não significa que alguém já tenha de fato chegado lá.

E a economia comportamental, que busca incluir as características da psique humana?

A economia comportamental é excitante, mas neste momento é uma disciplina com 40 modelos diferentes para 40 diferentes fenômenos. A corrente principal da Economia, como eu disse, tem a oferta igual à demanda como uma estrutura unificadora. E a economia comportamental não tem algo assim. Ela ainda tem muito poucos sucessos reais em termos de achar um arcabouço econômico que possa substituir o atual.

A crise levou a uma revisão do papel dos bancos centrais?

Agora há a ideia de que o banco central seja contracíclico. Então, por exemplo, se a economia está crescendo velozmente, ele pode querer apertar a regulação, de forma que não se tenha tanto aumento de crédito e se evitem bolhas. É a regulação macroprudencial. Faz muito sentido, mas é difícil de fazer. No Desta Vez é Diferente, Carmen e eu mostramos que, historicamente, a coisa vai na direção contrária. Quando há um boom, a regulação é relaxada - é um comportamento humano muito comum.

E quanto à regulação financeira em geral? O que mudou com a crise?

Certamente precisamos de mais independência para os legisladores, de partilhar mais informação, de mais regulação internacional. Mas o que se vê é que a Lei Dodd-Frank (de 2010, que visa reformular o sistema financeiro americano) é um esforço para manter exatamente o mesmo sistema que os Estados Unidos tinham antes da crise, com pequenas modificações para torná-lo um pouco melhor. Mas não está claro que isso seja suficiente.

O que está faltando?

Eu acho - e muitos acadêmicos argumentam na mesma direção - que os bancos deveriam ser obrigados a se financiar muito mais com capitalização (emissão de ações), e menos com captação por meio de bônus. A maioria dos acadêmicos diria que o novo acordo de Basileia (que estabelece parâmetros globais para regulação de bancos) pede um aumento de capitalização que não chega nem perto do que seria suficiente. Mas os reguladores são muito cautelosos quanto a mudar qualquer coisa. Eles foram convencidos pelo setor financeiro de que todo o crédito ia entrar em colapso, caso os bancos tivessem que levantar dinheiro com mais emissões de ações em vez de dívida. É um equívoco total.

O Brasil está num momento complexo de sua política econômica, com medidas macroprudenciais para ajudar no combate à inflação, controles de capital, intervenções no câmbio. Qual a sua visão?

Bem, não tenho muito conhecimento de causa, mas a minha sensação, falando com amigos no Brasil e lendo sobre o País, é que permanecem problemas importantes, como o governo ser grande demais e entraves no mercado de trabalho e em outros mercados, que impedem a economia de operar tão eficientemente quanto deveria. A grande pergunta é se o novo governo vai se mover na direção certa. O primeiro Lula fez isso, o segundo Lula, não. Quanto aos pontos que você ser referiu, minha impressão é que (o governo) está se debatendo um pouco, que muitas daquelas medidas não são efetivas mas. Por outro lado, é correto o instinto da equipe econômica de que, por causa de todos os fluxos de capital e do boom de crédito, eles deveriam se preocupar com a possibilidade de uma crise financeira em alguns anos. Eles estão certos de ser cautelosos, e o instinto de usar políticas macroprudenciais é muito bom.