Título: Dívida e impostos na zona do euro
Autor: Netto, Andrei
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/05/2011, Economia, p. B10
Conhecida no mundo todo como ''a crise da dívida soberana do euro'', a corrente crise na zona do euro tem a ver realmente com dívida externa, e não com dívida soberana
A corrente crise na zona do euro é conhecida em todo o mundo como "a crise da dívida soberana do euro". Mas a crise tem a ver realmente com dívida externa, e não com dívida soberana.
A importância da dívida externa é bem ilustrada pelo caso de Portugal: embora as relações entre dívida pública e déficit do país sejam, em grande parte, similares às da França, o prêmio de risco sobre sua dívida pública cresceu continuamente até ele se ver obrigado a recorrer ao fundo de resgate europeu. O problema-chave de Portugal não é, portanto, sua política fiscal, mas o alto endividamento (externo) de seu setor privado - seus bancos e empresas.
A limitada importância da dívida pública isolada é também evidente na Itália e na Bélgica. Ambos os países têm relações dívida/PIB mais altas que a de Portugal, mas ambos estão pagando prêmios de risco muito menores. A principal razão é que ambos têm uma divida externa muito pequena (a Bélgica na verdade apresenta um superávit em conta corrente). Aliás, embora a relação de dívida da Bélgica esteja acima da média na zona do euro (em torno de 100% do PIB), o país ainda paga um prêmio de risco de menos de 100 pontos-base - apesar de estar sem governo há mais de um ano.
Por que os mercados estão se concentrando na dívida externa? Uma razão evidente é que numa crise, a dívida privada tende a se tornar dívida pública. Os mercados financeiros olham, pois, para o endividamento geral de um país. Mas é importante saber de quem é a dívida.
A questão-chave é que os Estados da zona do euro conservam seus poderes integrais de tributação, o que produz um corolário simples para um país com dívida pública alta, mas sem endividamento externo: sua dívida pública está nas mãos de cidadãos do país, e o governo sempre pode pagar o serviço de sua dívida com alguma forma de tributação de soma total (por exemplo, um imposto sobre a riqueza).
O governo de um país desses pode, por exemplo, aprovar uma lei que obrigue cada detentor de bônus do governo a pagar um imposto equivalente a 50% do valor de face do bônus. O valor da dívida pública dessa maneira seria cortada pela metade, como seria se o governo ordenasse o banco central a dobrar a oferta monetária, o que presumivelmente causaria uma duplicação dos preços.
A natureza do imposto necessário para saldar a dívida pública pode ser diferente se bancos retiverem a dívida, porque nesse caso o governo teria de taxar os detentores de depósitos bancários. Mas o ponto-chave permanece: enquanto o governo retiver seus poderes plenos de taxação, ele sempre poderá financiar o serviço de sua dívida doméstica, mesmo sem a capacidade de imprimir dinheiro. Mas não é esse o caso se a dívida estiver em posse de estrangeiros, porque o governo não poderá tributá-los.
Portanto, é a dívida externa que constitui o problema subjacente para um país com problemas de solvência. (A exceção a essa regra são os Estados Unidos, que desfrutam do que Charles de Gaulle chamou de "privilégio exorbitante" de ter sua dívida estrangeira denominada em sua própria moeda.) As coisas ficam mais complicadas se residentes estrangeiros detiverem uma grande parte da dívida pública de um país, mas seus cidadãos também detiverem grandes ativos externos. Nesse caso, o governo enfrenta a tentação de dar o calote na sua dívida externa vencida, enquanto seus cidadãos ainda puderem desfrutar dos retornos de seus ativos estrangeiros. É mais difícil para o governo taxar os "ativos estrangeiros" de seus cidadãos, por maior que se torne essa tentação.
No entanto, mesmo nesse caso, o governo deveria ser capaz de pagar o serviço de sua dívida se puder de alguma forma induzir seus cidadãos a venderem seus ativos estrangeiros e comprarem bônus do governo domésticos em seu lugar.
A importância desse ponto foi ilustrada em 2001 pela Argentina, que não tinha uma grande dívida externa líquida. O setor privado possuía grandes ativos estrangeiros, enquanto o governo possuía aproximadamente a mesma quantidade de obrigações estrangeiras. Mesmo assim, a Argentina quebrou porque os argentinos ricos haviam tirado seus ativos do país e, com isso, para fora do alcance do governo, enquanto os argentinos pobres se recusavam a pagar os impostos necessários para satisfazer as cobranças de credores externos.
Por outro lado, quando os ativos externos do país são retidos não por famílias, mas por instituições, como fundos de pensão, eles podem ser identificados e taxados. Esse é o caso principal na Europa.
Esta análise sugere que o procedimento de "desequilíbrios (em conta corrente) excessivos" que está para ser introduzido na reforma de governança em curso na zona do euro vai na direção certa. Mas ele também implica que a resoluta concentração da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional no ajuste fiscal na periferia da UE é equivocada.
Para a Grécia, o ajuste fiscal é, evidentemente, a questão-chave. Para Portugal, porém, o problema-chave é o déficit externo contínuo do setor privado. A Irlanda é de novo diferente já que sua dívida externa é bem pequena e ela em breve terá um superávit em conta corrente. Seu governo não deveria precisar mais de financiamento externo, desde que consiga mobilizar as populações de seus próprios cidadãos. Como mostrou a experiência da Letônia, com isso os prêmios de risco podem cair muito rapidamente.
Em suma, o ajuste fiscal é necessário, mas insuficiente para escapar de uma crise de dívida. Promover a poupança doméstica e levar os cidadãos a comprarem bônus de seu próprio governo em vez de manter dinheiro no exterior, é igualmente importante. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
O AUTOR É DIRETOR DO CENTRO DE ESTUDOS POLÍTICOS EUROPEUS.