Título: Collor no Senado e na História
Autor: Barros, Alexandre
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2011, Espaço aberto, p. A2

Durante a guerra fria a União Soviética era quase impenetrável. Analistas de espionagem examinavam fotografias das solenidades públicas em que aparecia a elite soviética nos palanques. A análise era feita por meio do exame das imagens para verificar, nas montagens, quem era adicionado ou retirado das fotos oficiais, conforme uns eram promovidos e outros, banidos do governo.

Esta é, em qualquer lugar, uma das funções importantes das aparições públicas de autoridades: difundir para a politeia quem são os importantes e quem foi desalojado do poder.

No âmbito mais íntimo, o prestígio era medido pelo número de passos que cada ocupante do palácio tinha de andar para falar com o imperador. Raymundo Faoro descreve isso no ensaio Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. Hoje as fotos do Rio de Janeiro só destacam pontos turísticos da zona sul, mas no tempo do Império os poderosos moravam em São Cristóvão e no Engenho Velho (hoje Tijuca), bairros mais próximos da residência imperial, na Quinta da Boa Vista.

O Senado Federal inaugurou uma exposição de fotografias num de seus corredores sobre o papel do Parlamento na História do Brasil. Você, leitor, certamente já soube da eliminação das fotos relativas ao impeachment do presidente Fernando Collor e da posterior liberação de tais fotos pelo presidente da Casa, José Sarney. Como no Kremlin, tentaram eliminar na exposição um episódio marcante: o primeiro processo de impeachment de um presidente da República no Brasil.

Goebbels dizia que de tanto se repetir uma mentira ela acabava virando verdade. Neste caso talvez a tentativa fosse a de que, de tanto se eliminar o episódio do impeachment de Collor, ele poderia cair no esquecimento.

O ensino da História cumpre importante função de socialização política em todas as politeias: o ensinado é para induzir as pessoas a saberem quem cultuar e quem detestar, ou ignorar.

A revisão da historiografia norte-americana começou ali por 1970. A partir de então, historiadores começaram a iluminar episódios e personagens mitificados pela História oficial. Alguns heróis nacionais deixaram de sair tão bem na foto. Antes eram todos " santos": incorruptíveis e sexualmente puritanos.

Acaba de sair um livro com um título intrigante, One Nation Under Sex. Parodia um dos lemas dos EUA, One Nation Under God. Escrito pelo "maldito" editor da revista Hustler (se tiver curiosidade, procure nas locadoras ou nos canais a cabo o filme O Povo Contra Larry Flynt: conta a história real do editor da revista erótica Hustler, que respondeu a processos por "contaminar a América com pornografia" e ganhou na Suprema Corte). Larry Flynt e David Eisenbach contam agora como a vida sexual dos presidentes norte-americanos, de suas esposas e dos amantes de ambos influenciou a história política do país.

No Brasil estamos começando. Temos a batalha da Comissão da Verdade, que se propõe a revelar os porões da ditadura brasileira. Não é revanchismo, mas contar o que aconteceu e foi censurado na mídia. O Estado de S. Paulo teve importante papel quando, impedido pela força bruta de publicar as notícias reais, passou a publicar receitas de bolo para encher os espaços onde estariam as histórias que os censores haviam proibido. Não sabíamos qual a notícia, mas sabíamos que algo ali havia sido suprimido.

Outro movimento está começando a recontar a História do Brasil como ela foi. Jornalistas estão tendo papel primordial. Entre eles está Laurentino Gomes, com seus 1808 e 1822. Com menos pesquisa histórica e metodologia, aparece o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch.

A decisão do Senado, agora revertida, de não incluir fotos relativas ao impeachment de Collor ia na direção oposta: em vez de jogar mais luz sobre um episódio marcante da História, projetava sombras que podiam acabar em escuridão total. De tanta escuridão sobre o episódio, podíamos acabar esquecendo-o.

Todos são inocentes até prova em contrário. A apresentação pública do então diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, acusado de estupro por uma camareira do hotel onde se hospedava, em Nova York, levantou controvérsias exatamente por criar um ambiente de culpa em torno de alguém que era (e ainda é) apenas um suspeito, acusado de um crime sobre cuja autoria a Justiça ainda não se manifestou. Repetiram a dose com outro banqueiro 15 dias depois.

Consigo entender a supressão das fotos do impeachment para não constranger o senador Collor, que teria de passar pelo "túnel do tempo" (que liga os gabinetes dos senadores ao bloco central do Senado) e enfrentar a verdade a respeito de sua história. Isso não nos diz, nem deveria dizer a ele, de sua culpa, mas simplesmente de seu papel num determinado período da História brasileira. Ainda bem que foi revertida.

Collor tem tanto direito a exercer o seu mandato com liberdade quanto nós temos direito à verdade histórica.

John Mitchell, ministro da Justiça do governo Richard Nixon na época do escândalo de Watergate, foi preso e conduzido algemado de seu escritório para a prisão. Cumpriu pena por sua participação no encobrimento. Isso não o impediu de, depois de cumprida a sua pena, comparecer de smoking, elegante, ao baile inaugural da posse de Ronald Reagan.

Não podemos excluir episódios da verdade histórica nem isentar os personagens dos papéis que eles desempenharam na História. Temos, isso sim, a obrigação, para com as gerações futuras, de contar a História da maneira mais precisa possível - ainda que não nos esqueçamos de que os vencedores sempre tentarão escrever a História como mais lhes convém.

PH.D. EM CIÊNCIA POLÍTICA, É SÓCIO DA EARLY WARNING: RISCO POLÍTICO E POLÍTICAS PÚBLICAS (BRASÍLIA)