Título: Os mestres do euro e os PIGs
Autor: Milanese, Daniela
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/06/2011, Economia, p. B10

Na teimosia de insistir que esses países vivem apenas uma crise de liquidez, e não um[br]problema de solvência, estão colocando em risco todo o sistema do qual fazem parte

A Europa vive uma crise constitucional. Ninguém parece ter o poder de impor uma solução razoável à crise de endividamento dos países periféricos do continente. Em vez de reestruturar o fardo claramente insustentável das dívidas de Portugal, Irlanda e Grécia (os chamados PIGs), políticos e governantes estão pressionando pela aprovação de pacotes de resgate cada vez maiores com condições de austeridade cada vez menos realistas. Infelizmente, eles não estão apenas "empurrando o problema com a barriga", e sim empurrando uma bola de neve montanha abaixo.

É verdade que, por enquanto, o problema ainda é economicamente administrável. O crescimento na zona do euro é respeitável, e os PIGs correspondem a apenas 6% do PIB da região. Mas, na teimosia de insistir que esses países vivem apenas uma crise de liquidez, e não um problema de solvência, os representantes dos governos da zona do euro estão colocando em risco todo o sistema do qual fazem parte.

Grandes economias da zona do euro, como Espanha e Itália, convivem com os próprios problemas consideráveis de endividamento, principalmente levando-se em consideração seu crescimento anêmico e sua clara falta de competitividade. A última coisa de que precisam é que o público seja levado a crer que uma implícita união de transferência já estaria em vigor, e que as reformas e a reestruturação da economia podem esperar.

Representantes da União Europeia acreditam que seria catastrófico promover a reestruturação proativa da dívida de um de seus membros. Não há dúvida que o contágio se tornaria incontrolável depois de uma reestruturação da dívida grega. Ele só poderá ser contido quando a Alemanha construir uma muralha de proteção firme e crível, possivelmente defendendo-se da dívida dos governos centrais de Espanha e Itália. Este é exatamente o tipo de solução concreta que veríamos numa área em que houvesse verdadeira integração monetária.

Assim sendo, por que os líderes da Europa consideram tão inimaginável esta solução intermediária? Talvez isso decorra do fato de acreditarem que não dispõem dos mecanismos de governo necessários para tomar decisões difíceis, para escolher vencedores e perdedores. Em termos de arrecadação fiscal, as fracas e fragmentadas instituições da União Europeia contam com menos de 2% do PIB da zona do euro.

Qualquer tipo de decisão ousada exige necessariamente a unanimidade. Independentemente do tamanho, do endividamento e da responsabilidade de cada país, trata-se de um caso de "um por todos e todos por um". Não há sentido em preparar um plano B se não existe autoridade ou capacidade para colocá-lo em prática.

Pode a Europa ser beneficiada pela sorte? Existe alguma chance de a bola de neve de endividamento, disfunção e dúvida se desfazer tranquilamente antes de ganhar mais força? Tudo é possível em meio a tanta incerteza. Se o crescimento da zona do euro for muito superior ao esperado nos próximos anos, o balanço patrimonial dos bancos seria reforçado, e os bolsos do contribuinte alemão se tornariam mais generosos. Os países periféricos poderiam vivenciar um crescimento suficiente para sustentar seus ambiciosos compromissos de austeridade.

No entanto, parece muito maior a probabilidade de a estratégia atual levar a uma explosão e a uma reestruturação desordenada. Por que o povo grego (para não falar nos irlandeses e portugueses) deveria aceitar anos de austeridade e crescimento lento em nome da sustentação dos sistemas bancários da França e da Alemanha, a não ser que recebam a oferta de generosos incentivos financeiros? Como mostra o trabalho que preparei sobre a dívida soberana em parceria com o professor Jeremy Bulow, de Stanford, nos anos 80, é muito difícil obrigar um país a fazer pagamentos líquidos (subtraindo os novos empréstimos do volume de pagamentos) a estrangeiros equivalentes a mais de alguns pontos porcentuais durante alguns anos.

Para funcionar, a estratégia atual da UE e do Fundo Monetário Internacional requer uma ou duas décadas de pagamentos desse tipo. Essa é a única saída, a menos que estejamos dispostos a correr o risco de despertar a ira do contribuinte alemão, de quem se pediria que arcasse perpetuamente com as despesas europeias.

Talvez as coisas sejam diferentes desta vez. Talvez o encanto de pertencer a uma moeda cada vez mais usada como reserva torne possível uma situação de austeridade e recessão sustentadas de uma maneira raramente vista na história. Pessoalmente, duvido disso.

É verdade que, contrariando todas as probabilidades e a lógica histórica, parece que a Europa vai se manter na liderança do FMI. É importante destacar que os líderes dos mercados emergentes, resignados diante da aparentemente inevitável escolha para o cargo principal, não parecem perceber que ainda assim deveriam questionar a prerrogativa dos Estados Unidos de nomear o ocupante do extremamente poderoso cargo de segundo em comando no Fundo.

O FMI já foi extraordinariamente generoso com os PIGs. Depois que a nova equipe, favorável aos resgates, tiver tempo de se instalar, podemos esperar ainda mais generosidade, independentemente do fato de os países em dificuldades aderirem ao programa proposto.

Infelizmente, um FMI ultraflexível é a última coisa de que a Europa precisa agora. Com a crise constitucional no continente, chegamos precisamente ao momento em que o FMI precisa ajudar a zona do euro a tomar as difíceis decisões que a Europa não consegue tomar sozinha.

O Fundo precisa criar programas para Portugal, Irlanda e Grécia capazes de restaurar a competitividade e reduzir o endividamento, e que ofereçam a eles uma esperança realista de retomar o crescimento econômico. O FMI precisa evitar que os europeus permitam que sua paralisia constitucional transforme a bola de neve do endividamento da zona do euro numa avalanche global.

Excluído o FMI, a única instituição que talvez esteja em posição de agir é o extremamente independente Banco Central Europeu. Mas, se o BCE assumir completamente o papel de "credor de último caso", o próprio banco acabará se tornando insolvente. Não é assim que se garante o futuro da moeda única.

O desfecho de toda crise é difícil de prever. Talvez um amplo colapso do câmbio do euro seja suficiente, detonando um período de prosperidade nas exportações. Talvez a Europa esteja simplesmente destinada a prosperar, independentemente das circunstâncias. Mas é difícil imaginar como a moeda única poderá sobreviver muito mais na ausência de uma jogada decisiva no sentido de consolidar uma união fiscal muito mais robusta. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

O AUTOR É PROFESSOR DE ECONOMIA E POLÍTICAS PÚBLICAS NA UNIVERSIDADE HARVARD E FOI ECONOMISTA-CHEFE DO FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL