Título: A nova lei de Hama feita pelos sírios
Autor: Chacra, Gustavo
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/08/2011, Internacional, p. A12

População da cidade palco do maior massacre sírio supera o medo e enfrenta a família Assad

Em 1982, fui designado como correspondente em Beirute. Antes que eu chegasse à cidade, tinha começado a circular a notícia de um levante na cidade síria de Hama.

O presidente Hafez Assad tinha acabado com uma rebelião de muçulmanos sunitas em Hama ao atacar com artilharia os bairros onde a revolta se concentrava, passando, então, a dinamitar as construções, algumas delas com os moradores ainda dentro, e finalmente arrasando-as completamente com um rolo compressor.

Consegui um visto de entrada para a Síria, bem no momento em que Hama era reaberta. Foi dito que o regime sírio estava "encorajando" os cidadãos a visitar a cidade, ver os bairros esmagados e contemplar o silêncio. Bairros equivalentes a uma área de quatro campos de futebol pareciam ter sido atropelados por um tornado - mas aquilo não tinha sido obra da natureza.

Tratava-se de um ato de brutalidade sem precedentes, um acerto de contas entre o regime da minoria alauita, dos Assads, e a maioria xiita que ousou desafiá-lo. Segundo a Anistia Internacional, até 20 mil pessoas estariam enterradas em Hama. Contemplei o silêncio e dei-lhe um nome: "lei de Hama".

A lei de Hama governou os regimes no mundo árabe. Ela postulava: governe pelo medo - incuta o medo no coração do seu povo, mostrando a ele que você não respeita nenhuma regra, de modo que a população jamais pense em se rebelar. Isso funcionou por muito tempo na Síria, no Iraque, na Tunísia.

Hoje, o presidente da Síria, Bashar Assad, filho de Hafez, repete a tática consagrada pelo pai na tentativa de esmagar o novo levante, novamente centrado em Hama. Desta vez, o povo respondeu com sua própria lei de Hama, que é bastante notável.

Os sírios dizem: "Sabemos que, sempre que protestarmos, vocês vão nos metralhar sem clemência. Não temos mais medo, e não vamos mais nos manter passivos. Agora são vocês, líderes, que terão medo de nós. Esta é nossa lei de Hama". É o embate que se dá no mundo árabe - a nova lei de Hama contra a antiga lei de Hama - o "vou incutir medo em vocês" versus o "não temos mais medo".

Isso é ótimo para o povo. É difícil exagerar o quanto os regimes árabes desperdiçaram as vidas de toda uma geração, com suas tolas guerras contra Israel e uns contra os outros e suas óbvias jogadas para manter o poder. Nada de positivo seria possível com esses líderes.

Mas, hoje, a grande pergunta é: será possível progredir sem eles? Será que as diferentes comunidades árabes serão capazes de se unir e escrever contratos sociais que possibilitem a convivência entre eles na ausência de um ditador de mão de ferro? Será possível escrever uma lei de Hama positiva que não tenha como base o medo e sim o respeito mútuo, a proteção dos direitos das minorias e das mulheres e o governo consensual?

Não se trata de tarefa fácil. Os ditadores não construíram instituições democráticas nem deixam como legado para seu povo alguma experiência na democracia a partir das quais a sociedade pudesse administrar o país. O raiar de um novo dia ainda vai demorar algum tempo. Como aposta o ex-ministro do Interior da Jordânia Marwan Muasher, uns 10 ou 15 anos antes que a situação se normalize. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

É COLUNISTA E GANHADOR DO PRÊMIO PULITZER

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