Título: Tesouro se transformou no maior banco do País
Autor: Dantas, Fernando ; Saraiva, Alessandra
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/08/2011, Economia, p. B8

Círculo virtuoso na economia brasileira pode se tornar círculo vicioso, diz especialista em[br]contas públicas

José Roberto Afonso, economista

O Brasil está preparada para uma nova crise externa?

O País está mais preparado para enfrentar desafios, mas eles serão diferentes de 2008. Naquela crise, o Brasil fez o mesmo que os países ricos - também se endividou forte e rapidamente. Mas o que era remédio agora pode virar veneno.

O Brasil escapou da crise da dívida.

Sim, mas pagando a maior taxa de juros reais do mundo. O País atrai cada vez mais capitais externos, acumula cada mais reservas, valoriza cada vez mais o real. Aumentam os ganhos e a confiança dos estrangeiros. Crédito e economia crescem bem.

O que pode desandar, então?

O problema é que pode ser muito fácil e rápido para que o atual círculo virtuoso se transforme num círculo vicioso. O arranjo atual combina aumento rápido do crédito de origem pública - a fatia dos bancos estatais é de 19,8% do PIB enquanto o Tesouro Nacional é credor em 14,5% do PIB dos mesmos bancos públicos. Na prática, o Tesouro se transformou no maior banco do País. Porém, ao contrário de um banco clássico, não está sujeito a qualquer regulação prudencial. Tanto que, para chegar a tal posição, entre agosto de 2008 e junho de 2011, ele aumentou em 6,5 pontos do PIB o crédito extraordinário que concedeu aos bancos oficiais (basicamente o BNDES) enquanto a dívida bruta aumentou em 5,8 pontos no mesmo período, saltando para 65.3% do PIB. Como qualquer banco, há um limite para o Tesouro ficar se endividando para continuar emprestando. A dívida brasileira tem um patamar mais elevado do que a média dos emergentes, só fica atrás da indiana.

Como as agências de rating não identificam tal risco?

Elas comparam a dívida com a receita pública, pois estão preocupadas com a capacidade do governo de honrar os seus compromissos, e ele o faz com o que arrecada. É aí que entra o diferencial positivo brasileiro: uma carga tributária alta, muito acima da média dos emergentes. Ou seja, quanto mais o país se endivida, mais precisa manter e elevar sua carga tributária, e manter gastos comprimidos para gerar superávit primário elevado, e assim mostrar uma boa capacidade de solvência.

Qual é a contraparte do endividamento público nesse circuito?

A liquidez do setor privado brasileiro, que não foi abalada pela crise. As empresas não deixam o dinheiro no colchão e não aplicam em dólar. Só há uma grande e rentável alternativa, que é aplicar em títulos do Tesouro, ainda que indiretamente, via fundos de investimentos e operações compromissadas. Enfim, direta ou indiretamente, o setor privado, líquido, financia cada vez mais o governo. Para que funcione esse esquema, o governo se endivida cada vez mais, direta ou indiretamente. E para quê? Em boa parte, para dar mais crédito aos bancos públicos, que usam 95% ou mais desses recursos para dar crédito ao setor privado.

Como poderia se manter o círculo virtuoso, e não vicioso?

Se o aumento do endividamento público fosse canalizado para aumentar o investimento fixo (ainda que privado, via crédito estatal). Mas é equivocado supor que os bancos oficiais usem todos recursos extraordinários para apoiar projetos de investimento. Esquece-se que eles foram chamados, no auge da crise, a dar suporte a um enorme ajuste patrimonial (que envolveu a fusão e a troca do comando das maiores empresas do país, para não falar em bancos) e, depois, para criar artificialmente receita para o próprio governo - comprando ações e debêntures, pagando impostos e dividendos. Se todo acréscimo de crédito estatal tivesse sido efetivamente canalizado para investimento fixo, o Brasil poderia estar crescendo hoje em ritmo chinês.

Como diminuir o risco dos circuitos se inverterem?

Precisamos de reformas institucionais, mudar o horizonte para o longo prazo, e daí abrir espaço para agir no curto prazo e consertar a política econômica. O ruim é que não temos nenhuma perspectiva, nem de anúncio de reformas. Nem a tributária. Claramente, não se quer fazer nada. O problema é que, se tivermos turbulências e precisarmos de reformas, elas precisarão ser muito mais profundas. A política econômica ora é consistente, ora é inconsistente, e pode virar rápido de virtuosa a viciosa O Brasil é uma economia onde se vive perigosamente.