Título: Brasil é uma economia em que se vive perigosamente
Autor: Dantas, Fernando ; Saraiva, Alessandra
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/08/2011, Economia, p. B8

José Roberto Afonso lança e-book no qual analisa ligação entre boom de crédito e crescimento da dívida

Em meio à crise internacional dos mercados financeiros, a economia brasileira está longe de blindada, para José Roberto Afonso, especialista em finanças públicas. Envolvido na criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), Afonso alerta para os possíveis impactos negativos nas áreas fiscal e cambial da crise no Brasil e critica o avanço da dívida pública brasileira.

Ele acaba de lançar o e-book "Crise, Estado e Economia Brasileira", pela editora Agir. Para o economista, o aumento da dívida em dólar das empresas brasileiras é uma vulnerabilidade que pode cobrar seu preço, caso a moeda americana dispare por causa da crise. Segundo Afonso, mesmo após ter superado a crise de 2008, a economia brasileira ainda "vive perigosamente".

Lembrando das consequências, no início da crise global, do uso de "derivativos cambiais tóxicos", ele fala que, além de empresas altamente expostas, um dos maiores bancos brasileiros "quebrou". "Podem até dar outro nome para isso, fusão. Mas quebrou" afirma. Afonso recusa-se a citar o nome, mas a referência tem todo o aspecto de ser ao Unibanco, absorvido pelo Itaú.

O economista tem uma interpretação original, desenvolvida no livro recém-lançado, sobre o grande aumento do crédito no Brasil. Normalmente, o boom de crédito é visto como um avanço muito promissor dos últimos anos, mas alguns analistas preocupam-se com o que seria uma expansão excessiva.

Afonso também se preocupa, mas especialmente porque vê ligação entre o aumento da dívida pública bruta e a expansão do crédito. Simplificadamente, é como se o governo se endividasse para repassar dinheiro aos bancos públicos que, por sua vez, emprestam às empresas. Estas, finalmente, financiam o governo ao comprar títulos públicos.

O problema desse circuito, para Afonso, é que grande parte desse roda de endividamento não está sendo usada para financiar investimentos. E, dado os altos jurosl, é um mecanismo muito caro. Leia a entrevista abaixo:

"Tesouro se transformou no maior banco do País"

ENTREVISTA

José Roberto Afonso, economista

Círculo virtuoso na economia brasileira pode se tornar círculo vicioso, diz especialista em contas públicas

O Brasil está preparada para uma nova crise externa?

O País está mais preparado para enfrentar desafios, mas eles serão diferentes de 2008. Naquela crise, o Brasil fez o mesmo que os países ricos - também se endividou forte e rapidamente. Mas o que era remédio agora pode virar veneno.

O Brasil escapou da crise da dívida.

Sim, mas pagando a maior taxa de juros reais do mundo. O País atrai cada vez mais capitais externos, acumula cada mais reservas, valoriza cada vez mais o real. Aumentam os ganhos e a confiança dos estrangeiros. Crédito e economia crescem bem.

O que pode desandar, então?

O problema é que pode ser muito fácil e rápido para que o atual círculo virtuoso se transforme num círculo vicioso. O arranjo atual combina aumento rápido do crédito de origem pública - a fatia dos bancos estatais é de 19,8% do PIB enquanto o Tesouro Nacional é credor em 14,5% do PIB dos mesmos bancos públicos. Na prática, o Tesouro se transformou no maior banco do País. Porém, ao contrário de um banco clássico, não está sujeito a qualquer regulação prudencial. Tanto que, para chegar a tal posição, entre agosto de 2008 e junho de 2011, ele aumentou em 6,5 pontos do PIB o crédito extraordinário que concedeu aos bancos oficiais (basicamente o BNDES) enquanto a dívida bruta aumentou em 5,8 pontos no mesmo período, saltando para 65.3% do PIB. Como qualquer banco, há um limite para o Tesouro ficar se endividando para continuar emprestando. A dívida brasileira tem um patamar mais elevado do que a média dos emergentes, só fica atrás da indiana.

Como as agências de rating não identificam tal risco?

Elas comparam a dívida com a receita pública, pois estão preocupadas com a capacidade do governo de honrar os seus compromissos, e ele o faz com o que arrecada. É aí que entra o diferencial positivo brasileiro: uma carga tributária alta, muito acima da média dos emergentes. Ou seja, quanto mais o país se endivida, mais precisa manter e elevar sua carga tributária, e manter gastos comprimidos para gerar superávit primário elevado, e assim mostrar uma boa capacidade de solvência.

Qual é a contraparte do endividamento público nesse circuito?

A liquidez do setor privado brasileiro, que não foi abalada pela crise. As empresas não deixam o dinheiro no colchão e não aplicam em dólar. Só há uma grande e rentável alternativa, que é aplicar em títulos do Tesouro, ainda que indiretamente, via fundos de investimentos e operações compromissadas. Enfim, direta ou indiretamente, o setor privado, líquido, financia cada vez mais o governo. Para que funcione esse esquema, o governo se endivida cada vez mais, direta ou indiretamente. E para quê? Em boa parte, para dar mais crédito aos bancos públicos, que usam 95% ou mais desses recursos para dar crédito ao setor privado.

Como poderia se manter o círculo virtuoso, e não vicioso?

Se o aumento do endividamento público fosse canalizado para aumentar o investimento fixo (ainda que privado, via crédito estatal). Mas é equivocado supor que os bancos oficiais usem todos recursos extraordinários para apoiar projetos de investimento. Esquece-se que eles foram chamados, no auge da crise, a dar suporte a um enorme ajuste patrimonial (que envolveu a fusão e a troca do comando das maiores empresas do país, para não falar em bancos) e, depois, para criar artificialmente receita para o próprio governo - comprando ações e debêntures, pagando impostos e dividendos. Se todo acréscimo de crédito estatal tivesse sido efetivamente canalizado para investimento fixo, o Brasil poderia estar crescendo hoje em ritmo chinês.

Como diminuir o risco dos circuitos se inverterem?

Precisamos de reformas institucionais, mudar o horizonte para o longo prazo, e daí abrir espaço para agir no curto prazo e consertar a política econômica. O ruim é que não temos nenhuma perspectiva, nem de anúncio de reformas. Nem a tributária. Claramente, não se quer fazer nada. O problema é que, se tivermos turbulências e precisarmos de reformas, elas precisarão ser muito mais profundas. A política econômica ora é consistente, ora é inconsistente, e pode virar rápido de virtuosa a viciosa O Brasil é uma economia onde se vive perigosamente.