Título: A crise e a estratégia fiscal
Autor: Khair, Amir
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/08/2011, Economia, p. B6

A crise de 2008 atingiu o cerne do sistema financeiro mundial, salvo provisoriamente pelos governos, que assumiram dívidas para evitar uma quebradeira geral desse sistema e o consequente colapso social e econômico dos países que constituem o cerne do sistema capitalista ­ Estados Unidos, Europa e Japão.

O pagamento dessas dívidas está caindo nas costas da população, que reage às consequências da solução adotada por esses países para reverter a elevação do endividamento, que foi de conter o crescimento econômico e cortar despesas públicas que beneficiavam a população.

Não está dando certo. A situação fiscal tende a se agravar, quando se pisa no freio da economia e se cortam despesas públicas. A explicação é simples: a redução da despesa acaba sendo inferior às perdas causadas por: a) redução da arrecadação e; b) elevação dos juros, devido aos empréstimos que foram elevados. 1. Crescimento. O Brasil, felizmente, não tinha o sistema financeiro comprometido com títulos podres e adotou com agilidade políticas anticíclicas fiscais e monetárias. Mesmo assim, não conseguiu evitar a recessão de 0,6% do PIB em 2009, rompendo um crescimento médio anual de 4,81% ocorrido nos cinco anos que antecederam a crise (2004 a 2008).

Mas as medidas anticíclicas foram produzindo seus efeitos de estímulo ao consumo e investimento, coroando 2010 com um crescimento de 7,5%. Algumas análises acharam exagerado esse crescimento. Não foi. O crescimento médio do biênio 2009/2010 foi de 3,35%. Assim, a crise afetou o ritmo de crescimento, reduzindo-o em 1,46 pontos porcentuais (4,81 menos 3,35).

Há que recuperar a tendência de crescimento ocorrida de 2004 a 2008, e o Brasil tem potencial para crescer acima de 5%. Infelizmente o governo se dobrou perante o risco da perda de controle do processo inflacionário vindo de fora e típico do primeiro quadrimestre. Como resposta, cortou R$ 50 bilhões do orçamento e adotou na política monetária a elevação da Selic. O objetivo foi o de reduzir o ritmo de crescimento. O erro na estratégia do governo foi desconsiderar que poderia ocorrer uma recidiva da crise, que iria afetar o crescimento e reduzir a inflação. O governo acabou de rebaixar a previsão do crescimento de 4,5% para 4,0% em decorrência do impacto da crise. Outras análises consideram que será inferior a 4%.

2. Inflação. A partir de setembro de 2010, em consequência da decisão do banco central americano de injetar na economia US$ 600 bilhões até junho deste ano, as commodities foram subindo de preço para compensar a desvalorização do dólar e pela especulação financeira na aposta de que o dólar continuaria a se desvalorizar perante as outras moedas. Essa elevação de preços aumentou a inflação em todos os países. Coincidentemente no primeiro quadrimestre ocorre quase metade da inflação do ano, devido às chuvas e despesas como IPTU, IPVA, material e matrícula escolar, etc. Para agravar, ocorre a falta de etanol, da entressafra da cana-deaçúcar, que respondeu por parte significativa da inflação.

O controle da inflação passível de ação do governo é na dosagem do ritmo de crescimento dos empréstimos para o consumo, como feito pela primeira vez em 6 de dezembro, na última reunião do Copom de 2010. Naquela ocasião, ao invés de elevar a Selic, adotou as medidas macroprudenciais que encareceram o crédito para empréstimos com prazos superiores a 24 meses, exigiu mais capital dos bancos e aumentou os depósitos compulsórios dos bancos no Banco Central (BC).

Essas medidas causaram prejuízo aos bancos, que reagiram pondo em dúvida a capacidade do BC em controlar a inflação. Era a credibilidade da política monetária posta em xeque pelo mercado financeiro.

Face a essa reação, o BC abandonou a continuidade no uso dessas medidas e elevou a Selic nas cinco reuniões do Copom deste ano, passando-a de 10,75% para 12,50% a partir de 21 de julho. A Selic, que já era a mais alta do mundo, afastou-se mais ainda da praticada pelos demais países. Com essa guinada do BC, o mercado financeiro passou a elogiá-lo.

As elevações da Selic aumentaram as despesas com os juros, prejudicando a gestão fiscal, além de aumentar a atração do capital especulativo internacional nas operações de carry trade.

3. Estratégia. Com o avanço da crise, as commodities estão perdendo preço e vão contribuir para a queda internacional da inflação. No nosso caso, ainda temos o benefício da boa safra para a oferta de alimentos. Isso aponta para três ações na estratégia da política econômica: a) retomar os estímulos ao crescimento; b) baixar rapidamente a Selic, e; c) pilotar a inflação dosando a oferta e o custo do crédito pelas medidas macroprudenciais.

A estratégia para retomar o crescimento econômico é ampliar a transferência de renda, que estimula o consumo, a produção, o emprego e atrai os investimentos das empresas. Nesse sentido, o maior impulso econômico virá do reajuste do salário mínimo em janeiro do próximo ano. O crescimento econômico que será gerado vai ampliar a arrecadação pública em nível que poderá superar as despesas públicas que dependem do salário mínimo.

A redução da Selic vai no caminho da racionalidade macroeconômica, ao deixar de ocupar o vergonhoso título de país com a mais alta taxa básica de juros. Essa redução favorece o equilíbrio fiscal, reduz o custo de carregamento das reservas internacionais, permite um câmbio mais favorável ao comércio exterior, com maior saldo na balança comercial e menor rombo na conta de serviços e rendas, especialmente na questão das remessas de lucros e dividendos e nas viagens ao exterior.

Em síntese, melhorariam os fundamentos macroeconômicos do País para o enfrentamento da crise.

O mais importante é saber se o governo vai de fato reduzir a Selic. É necessário questionar o velho argumento de que a dívida e os juros só vão cair se caírem as despesas do governo. Se a Selic não fosse a mais alta do mundo, ainda se poderia considerar essa avaliação. Se o objetivo é reduzir as despesas do governo e a dívida, a redução da Selic é o melhor e mais rápido caminho. Isso não invalida o argumento que se pode e deve reduzir outras despesas que não se justificam.

Mas a principal redução das despesas é com os juros gerados pela Selic. Nos últimos dezesseis anos (1995 a 2010), foram jogados fora todo ano, em média, 7,38% do PIB! Essa é a maior gastança do País.

Caso os governos FHC e Lula tivessem reduzido a Selic, se teria há muito tempo zerado a dívida, equilibrado as contas públicas e recursos suficientes para ter resolvido o elevado déficit social e de infraestrutura do País.

A crise pode precipitar a redução da Selic e o Conselho Monetário Nacional poderá impor limites às escorchantes taxas de juros e tarifas bancárias. Resta ver se o governo tem essa visão ou se continuará refém do mercado financeiro, que tem na Selic elevada e nas taxas de juros de agiotagem sua principal fonte de lucro.

Ou o Brasil derruba as taxas de juros ou as taxas de juros derrubam o Brasil.