Título: Justiça suspende lei que destina leitos de hospitais públicos a plano de saúde
Autor: Toledo, Karina
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/09/2011, Vida, p. A18

Para MP, legislação dificultará atendimento da população que depende do SUS em instituições geridas por Organizações Sociais; objetivo da medida, diz governo, é fazer com que hospitais sejam ressarcidos pela assistência prestada a pacientes de planos

Liminar concedida ontem pelo Tribunal de Justiça de São Paulo suspende os efeitos da lei que autoriza hospitais públicos estaduais administrados por Organizações Sociais (OS) a destinar até 25% dos leitos a planos de saúde. A decisão é resultado de ação proposta pelo Ministério Público do Estado, que argumenta que a legislação favorece a chamada "dupla porta" na rede pública. A Secretaria de Estado da Saúde afirma que vai recorrer.

No início do mês, a pasta havia autorizado o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e o Hospital de Transplantes Dr. Euryclides de Jesus Zerbini a ofertar seus serviços a particulares. A medida poderia ser estendida para outros 24 hospitais estaduais administrados por OSs. Segundo o MPE, isso representaria 2 milhões de leitos a menos no Sistema Único de Saúde (SUS).

Agora, de acordo com a decisão da 5.ª Vara da Fazenda Pública, o governo do Estado fica proibido de celebrar contratos de gestão ou de alterar os já existentes para possibilitar a venda de serviços a planos, sob pena de multa diária de R$ 10 mil.

No texto da liminar, o juiz Marcos Lima Porta afirma que a lei dos 25% favorece a prática de dupla porta e promove a "institucionalização da atenção diferenciada com: preferência na marcação e no agendamento de consultas, exames e internação; melhor conforto de hotelaria, como já ocorre em alguns hospitais universitários no Estado".

Consenso. Diversas entidades da saúde pública, como os Conselhos Nacional e Estadual da Saúde, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo e o Conselho Regional de Medicina já se manifestaram contra a medida. Para o promotor Arthur Pinto Filho, esse consenso pesou no julgamento do pedido de liminar.

"Até o Conselho Estadual de Saúde, presidido pelo próprio Giovanni Cerri (secretário estadual de Saúde), enviou ofício ao MPE pedindo providências contra a lei. Como um secretário tenta enfiar goela abaixo da população uma medida rejeitada por todos?", questiona o promotor.

"É a primeira vez que a Justiça se posiciona contra a "dupla porta". Esperamos que essa liminar abra uma discussão para que isso seja considerado ilegal seja onde for", afirma Mario Scheffer, da ONG Pela Vidda. A entidade foi uma das que iniciou a mobilização contra a lei com uma representação no MPE. "Agora entramos também com uma representação contra o projeto de lei que pretende legalizar a "dupla porta" já existente no Hospital das Clínicas", revela.

Para o especialista em saúde pública Gilson Carvalho, a liminar é um indicativo de que começa a mudar a o entendimento da Justiça sobre a universalidade do SUS. "Não podemos, entretanto, contar com a permanência da medida, pois o poder de fogo destas instituições e o destaque social de seus dirigentes têm levado a Justiça a derrubar logo em seguida as liminares."

Ressarcimento. Procurada pela reportagem, a secretaria afirmou, em nota, que a finalidade da lei é permitir que os hospitais possam ser ressarcidos pela assistência prestada a pacientes de planos de saúde. "Sem essa possibilidade de cobrança, permanecerá o quadro de injusto e de indevido benefício às operadoras de planos de saúde, que recebem a mensalidade dos seus clientes, mas não têm nenhum desembolso quando eles são atendidos em hospitais públicos", diz o texto.

O ressarcimento ao SUS, na verdade, já está previsto na lei dos planos de saúde. Mas a cobrança não pode ser feita pelo próprio hospital que prestou o serviço, e sim pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Na maioria dos casos, as operadoras não fazem o reembolso. Segundo auditoria do Tribunal de Contas da União, a ANS deixou de cobrar dos planos, em cinco anos, R$ 2,6 bilhões - mais de R$ 500 milhões por ano.

ENTREVISTAS

""Operadoras esperarão por vantagem""

Nacime Mansur, do Zerbini

O Hospital de Transplantes Dr. Euryclides de Jesus Zerbini foi uma das duas instituições autorizadas pela Secretaria de Estado da Saúde a ofertar seus serviços aos planos. Mas seu superintendente, Nacime Salomão Mansur, acredita não ser possível colocar a lei em prática sem que exista a "dupla porta".

O senhor é a favor da lei dos 25%?

Sou favorável a cobrar o atendimento que já é prestado a pacientes dos planos. Mas a forma como a lei foi regulamentada torna muito difícil evitar que o paciente de plano de saúde seja privilegiado.

Por quê?

O hospital teria de fazer um contrato com as operadoras para atender a esses usuários e, para isso, teria de oferecer alguma coisa. As operadoras vão esperar alguma vantagem para seus usuários.

De que forma poderia ser feita a cobrança?

A legislação poderia inovar e permitir que os hospitais cobrassem diretamente das operadoras os serviços que já prestam - em vez de esperar pela ANS. Acho que a discussão deveria caminhar nesse sentido.

"Iniciativa do governo estadual é justa"

Paulo Hoff, do Icesp

Para o diretor-geral do Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp), Paulo Hoff, o modelo de ressarcimento proposto pelo governo do Estado pode não ser o ideal, mas é uma iniciativa válida para encontrar fontes alternativas de financiamento da alta complexidade.

O senhor é a favor da lei?

Os hospitais de alta complexidade já atendem esses pacientes que possuem plano. Parece-me justo criar uma forma em que eles possam contribuir para aumentar o financiamento dessas instituições. Mas sou contra um sistema em que um paciente seja favorecido.

É possível colocar a lei em prática sem que haja "dupla porta"?

É o que a lei manda e eu sou otimista. É preciso determinar com cuidado como será feito o referenciamento. Se você, por exemplo, determina que o paciente do plano também precisa passar por uma Unidade Básica de Saúde (UBS), acaba prejudicando o usuário do SUS, pois aumenta a fila da UBS.

Mas seria possível manter filas iguais com unidades referenciadoras diferentes?

Não é fácil, mas também não é impossível.