Título: Israel desdenha um aliado
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/09/2011, Notas e informações, p. A3

Israel é, de longe, a maior potência militar do Oriente Médio e o único país da região a possuir armas atômicas - o que jamais confirmou nem desmentiu. Ainda assim, considera toda contestação ao tratamento que impõe aos palestinos, cujos territórios ocupa e coloniza desde a Guerra dos Seis Dias, há 44 anos, uma forma de "ameaça existencial" (como se refere, também, ao programa nuclear iraniano). Esse conceito podia ser aceito quando seis países árabes atacaram o então fraco Estado judeu, imediatamente após a sua criação, em 1948. Mas só significou algo real, pela última vez, um quarto de século depois, quando, não fosse o engajamento americano de última hora, Israel talvez levasse a pior na Guerra do Yom Kippur, contra outra coalizão árabe liderada pelo Egito e a Síria.

A constante ameaça de seus vizinhos serviu de justificativa para Israel responder com extrema violência às intifadas palestinas, como ficaram conhecidos os levantes de 1987 e 2000 nos territórios ocupados, e aos mísseis lançados sobre o sul do país pelos extremistas do Hamas que controlam a Faixa de Gaza. A reação desproporcional da operação israelense "Chumbo derretido", na virada de 2008 para 2009, matou mais de mil civis e produziu uma crise humanitária sem precedentes na área. Nem por isso, depois do armistício entre as partes, Israel afrouxou o bloqueio imposto ao exíguo território, condenado praticamente no mundo inteiro. Na prática, trata o 1,7 milhão de habitantes da Faixa como se cada um deles fosse um militante tentando obter armas do exterior.

E tratou como se fossem os seus fornecedores os ativistas pró-Gaza embarcados em maio do ano passado na flotilha de seis navios capitaneada pelo Mavi Marmara, de bandeira turca, para desafiar o bloqueio. Em águas internacionais, comandos israelenses abordaram a embarcação com violência, e com violência foram recebidos. Nove cidadãos turcos e um americano de ascendência turca foram mortos à bala - à queima-roupa, quando não pelas costas, como se viria a saber. Pelo menos um foi executado. O episódio pôs a pique a mais antiga, estratégica e lucrativa relação do Estado judeu com um país muçulmano. Por conta dos estreitos laços da Turquia com o Ocidente (o país é membro da Otan, a aliança atlântica) e por não ser árabe a sua população, sucessivos governos seculares turcos, além do seu influente establishment militar, aprovaram as parcerias com Israel.

Mas, enquanto Israel continua o mesmo, a Turquia mudou. A invasão de Gaza implodiu as negociações de paz entre o Estado judeu e a Síria, intermediadas pelo primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan. O seu colega Binyamin Netanyahu nem se deu ao trabalho de avisá-lo do ataque. Erdogan converteu esse revés para as ambições turcas de ocupar espaço próprio na cena global em oportunidade para assumir o patrocínio da causa palestina - o que lhe vale o apoio da esmagadora maioria de seus compatriotas e a imagem de herói no mundo islâmico. No passado, a Turquia jamais permitiria que uma embarcação de bandeira nacional participasse de um ato para ofender Israel. Tendo permitido, e tendo os israelenses respondido como de hábito, sem se preocupar com o efeito disso sobre uma preciosa relação bilateral, ela só poderia degringolar.

No domingo, em seguida à divulgação de um relatório da ONU que - apesar de defender o bloqueio de Gaza - considerou "excessiva e irrazoável" a conduta das forças de Israel, e diante de nova recusa de Netanyahu de se desculpar com a Turquia, Erdogan deu 48 horas de prazo para o embaixador israelense deixar Ancara, rebaixou o contato diplomático entre os dois países a segundos-secretários e congelou o intercâmbio militar com o Estado judeu.

No aeroporto de Istambul, turistas israelenses passaram a ser discriminados - e vice-versa em Tel-Aviv. A prepotência do governo de Israel é fora de série. Assessores de Netanyahu revelaram que ele se recusou até a emitir a "declaração apropriada de pesar" sugerida pela ONU (e tida pela Turquia como insuficiente) porque seria sinal de fraqueza. Essa mentalidade é que é a verdadeira "ameaça existencial" a Israel.