Título: Precipitação e risco
Autor: Assis, Luís Eduardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/09/2011, Economia, p. B2

A decisão do Banco Central (BC) de promover corte abrupto nas taxas de juros surpreendeu o mercado e reavivou a interpretação simplista de que tenha havido ingerência "política" numa iniciativa que deveria ser exclusivamente "técnica". Talvez seja útil olhar isso com um pouco mais de calma. Vale lembrar, antes de mais nada, que a autoridade monetária não constitui um quarto poder da República e, nestas condições, segue diretrizes gerais da política econômica do Poder Executivo, democraticamente eleito. É lamentável e contraditório com nossa experiência inflacionária traumática que não exista um mecanismo institucional que atribua ao Banco Central a missão de combater exclusivamente a inflação. Mas não é assim e, assim não sendo, não cabem surpresas quando a autoridade monetária resolve privilegiar o crescimento em detrimento da inflação.

O fato de que a inflação em 12 meses esteja no nível mais alto desde junho de 2005, quando a taxa Selic era de 19,75%, mostra que a opção foi por correr riscos. Num quadro em que os indicadores de desaquecimento convivem ainda com sinais de dinamismo na economia, uma mudança tão significativa nos juros seria necessária em três circunstâncias: 1) se houvesse sinal inequívoco de que a economia mundial está no limiar de uma crise aguda; 2) no caso de o Executivo ter conseguido aprovar um forte ajuste fiscal baseado na contenção de despesas; ou 3) no contexto de uma ampla desindexação da economia que afetasse os preços administrados, o mercado de trabalho e os títulos públicos. Nada disso ocorre. A crise financeira promete turbulência e baixo crescimento - mas não há quem preveja colapso para o Brasil. Os gastos públicos continuam crescendo a taxas generosas e a falta de apoio parlamentar que impede a austeridade (na hipótese de o Executivo assim o desejar) é a mesma que impede a desindexação.

Quanto à "interferência" política, o difícil é entender a lógica (política, por suposto) dessa intervenção. O conflito típico que marca os ciclos políticos está entre objetivos de curto e de longo prazos. Assim, medidas amargas podem não ser adotadas em anos eleitorais para que os sacrifícios a elas associados não prejudiquem o desempenho nas urnas. Uma vez ganhas as eleições, se for o caso, enfrentam-se os problemas. No caso do atual corte dos juros, no entanto, mesmo se o único objetivo for o ganho eleitoral, o "timing" parece inadequado. Se a inflação continuar alta, como espera a maioria dos analistas, os salários reais tendem a perder poder de compra e é bem provável que isso se reflita na votação das eleições municipais em 2012. Não estamos diante do dilema clássico entre objetivos eleitorais de curto prazo versus estabilidade econômica no longo prazo. Desta vez, nem sequer os benefícios para os partidos da coalização governamental estão garantidos. Mesmo se a lógica fosse imediatista e eleitoral, em detrimento do crescimento sustentável, faria mais sentido segurar os juros agora e promover as mudanças que fossem politicamente viáveis na direção da desindexação e do controle de gastos para, então, no início de 2012, assumir o risco de uma redução de juros.

Na sequência esdrúxula que estamos vendo, tudo ocorre como se juros altos fossem apenas resultado de um exercício de autoflagelação do Banco Central, capturado pelos interesses dos rentistas que atravancam o progresso do lado "real" da economia. Tudo seria muito simples se isso fosse verdade. O problema é que não é. A ninguém, nem aos bancos, ocorre defender os juros altos como parte da ordem natural das coisas. Mas sua redução - necessária, por todos os títulos - depende menos de gestos voluntaristas que põem em risco a estabilidade da economia e mais da habilidade em costurar alianças políticas que garantam a aprovação de mudanças estruturais que corrijam as distorções que explicam por que eles são tão altos.

ECONOMISTA. FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DA PUC-SP E DA FGV-SP