Título: Na Rússia, volta o indispensável
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/10/2001, Internacional, p. A15

Putin poderia planejar sua saída, ou ao menos dizer que não pretende ser um Brejnev, que ao final mal conseguia falar

Depois que o primeiro-ministro Vladimir Putin anunciou no dia 24 que retornaria à presidência, correu pelos sites da internet russa um desenho que captava a combinação de desespero e hilaridade peculiar a esse país. A paródia imaginava Putin, atualmente com 58 anos, ainda no cargo aos 70, com profundas olheiras em torno dos seus penetrantes olhos azuis; aos 80, com os últimos cabelos colados ao crânio sarapintado, e aos 90, esquelético, as faces encovadas ao redor da dentadura.

Evidentemente, os russos estão acostumados a ser governados por homens velhos. Todos os que viveram os acontecimentos dos anos 80 lembrarão da longa batalha travada pelo Partido Comunista com a imortalidade, quando a poltrona do secretário-geral passava de um frágil personagem cambaleante para outro. Os prognósticos políticos tinham base nos sinais de morte iminente - o andar arrastado de Brejnev, a palidez de Andropov, a respiração ofegante de Chernenko - porque a morte era a única coisa que poderia abrir a porta para as reformas mais importantes.

A decisão de Putin de, no próximo ano, retornar à presidência, posto que ele poderá ocupar por dois mandatos sucessivos até 2024, abre a possibilidade de um governo ao longo de um período igualmente indefinido. Embora a maioria dos russos soubesse que Putin ainda dirigia o país depois de deixar a presidência em 2008, os anos que se seguiram trouxeram escuridão e confusão quanto ao verdadeiro plano sucessório. Agora não há confusão: não há plano sucessório.

Não é justo comparar a atual situação com a gerontocracia da período soviético tardio, porque os soviéticos tinham um Politburo, um pequeno círculo de altos funcionários conservadores encarregados de escolher o futuro líder. Nem é possível compará-la a uma monarquia, amarrada a normas bizantinas, mas quase inalteráveis.

Na Rússia, a escolha está nas mãos de uma única pessoa, que uma manhã acordou e resolveu que não poderia confiar o cargo a mais ninguém. Embora Putin tenha declarado à nação que a reformulação da liderança havia sido acordada "há vários anos", a reação indignada do seu importante assessor, o ministro das Finanças Aleksei L. Kudrin, que se recusou publicamente a trabalhar enquanto existir tal acordo, sugere algo um pouco mais improvisado. Se é que existe um projeto para essa forma de governo, são as ditaduras da Ásia Central, cujos líderes idosos agora tentam impor a sucessão dinástica.

Resta ver se os russos aceitarão esse modelo. Putin é tão popular que quase certamente venceria em eleições livres e transparentes, e nem isso surpreenderia - os gastos públicos subiram de maneira tão significativa que as aposentadorias aumentaram 41% em termos reais desde 2008, observa o cientista político Daniel Treisman. que estudou o efeito das taxas de crescimento econômico na sobrevivência dos líderes.

Além disso, existe uma lógica profunda no estilo autocrático de Putin, bem como no de seus colegas na Bielo-Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão e Azerbaijão. Na maioria desses países, a concorrência política se assemelha indubitavelmente a uma guerra. Os rivais políticos são retratados como malfeitores que procuram pôr em prática os projetos dos inimigos do país. O poder extremamente centralizado é aceito como a única maneira de administrar um sistema complexo, como um muro alto para manter o caos afastado. Esse poder não está investido num partido e nem numa junta militar, mas em um único homem.

Um sistema que funciona no Cazaquistão talvez não funcione em Moscou, e Treisman duvida de que Putin tenha a opção de permanecer no poder até 2024 sem correr o risco de desencadear uma crise política.

Está se tornando mais difícil controlar a população da Rússia, e a abundância de recursos como os combustíveis fósseis vem se reduzindo, enquanto a penetração da internet é de 40%. Antes mesmo do anúncio, as autoridades russas mostravam-se tão apreensivas com os levantes da primavera árabe que solicitaram uma convenção das Nações Unidas exigindo que os países evitassem usar a internet para "campanhas psicológicas realizadas contra a população de um país com a finalidade de desestabilizar a sociedade". "Eles não estão preocupados com a sucessão, estão preocupados com a Praça Tahrir", afirmou Stephen Sestanovich, um acadêmico russo do Conselho para as Relações Exteriores.

O retorno de Putin implica que nos próximos seis anos, "se você tiver um novo líder, ele terá de vir por meio da descontinuidade política", afirmou. "Nesse sentido, o que Putin fez é uma aposta muito maior do que ele imagina."

Com o porte atlético que exibiu em roupa de mergulhador nesse verão, Putin não parece estar declinando fisicamente, e os russos não parecem inclinados a ir às ruas para exigir uma mudança política. O eleitorado mais insatisfeito com o governo de Putin, as elites com um elevado nível de formação, é tão hipócrita a respeito do governo que é difícil imaginá-las fazendo mais do que resmungar um pouco e reservar uma mesa num bom restaurante.

Passarão seis longos anos e meio até que o povo russo seja novamente convocado a manifestar a sua opinião. Putin poderia ajudar a si mesmo planejando imediatamente sua eventual saída, nem que se limitasse a acenar com a mensagem de que não pretende ser um Brejnev, que no final não conseguia mais falar de maneira inteligível.

A responsabilidade de fazer isso recai inteiramente sobre seus ombros. Ele herdou um mecanismo para garantir a transferência pacífica do poder - as eleições. Mas os eleitores foram obrigados a participar de uma série tão grande de xaradas de estilo soviético que dificilmente as consideram um veículo para as suas aspirações. Talvez esteja na hora de trazer de volta o Politburo. / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA