Título: Brics e a crise da dívida mundial - novo equilíbrio de poder
Autor: Chauvet, Marcelle ; Garnero, Mario
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/11/2011, Economia, p. B2

Como evidenciado pela recente crise financeira nos Estados Unidos, intensificada pela falência do Lehman Brothers, o colapso de bancos importantes em tempos de incerteza no mercado financeiro pode levar a um contágio avassalador pelo sistema bancário, que eventualmente causa grandes danos à economia mundial. Analogamente, a crise fiscal soberana europeia tem se espalhado gradualmente entre os países da zona do euro, aumentando o risco de default e ameaçando o futuro do euro. O receio de uma recorrência do colapso financeiro de 2008 tem causado uma crise de liquidez que, por sua vez, pode causar uma crise de solvência. Essa possibilidade recebeu bastante atenção no recente pacote de resgate da União Europeia (UE).

Os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) têm contribuído de forma importante para a manutenção de níveis elevados de liquidez internacional. Como uma porção significante de suas reservas internacionais é investida em valores mobiliários emitidos por países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os Brics auxiliam esses países a manterem taxas de juros em torno de zero.

Os Brics estão, portanto, ajudando as economias maduras a alcançarem uma saída mais suave para a crise. As reservas internacionais do grupo estão estimadas em US$ 4,3 trilhões, cerca de metade do total das reservas mundiais. São reservas suficientes para comprar 80% de todas as empresas listadas no Nasdaq.

No entanto, as reservas internacionais dos Brics estão sendo negativamente afetadas por vários fatores, como as políticas de estímulos dos bancos centrais dos Estados Unidos e da União Europeia, a desvalorização do dólar e do euro e o aumento no risco de default das dívidas do governo dos Estados Unidos e países-membros da UE.

Esses eventos vêm contribuindo para uma maior preocupação com relação ao risco das dívidas dos Estados Unidos e da UE mantidas pelos Brics. Para proteger suas posições contra maiores perdas potenciais e diversificar suas reservas internacionais para limitar exposição ao risco relacionado ao dólar, os Brics vêm intensificando conversas e tomando atitudes com relação a uma reserva monetária mundial alternativa.

Lições da história recente não recomendariam um retorno ao padrão ouro. O compromisso com esse padrão deixou os países-membros vulneráveis a ataques especulativos de suas moedas, o que levou a fortes oscilações na produção econômica e ao desemprego. Além disso, a adoção do padrão ouro implicou uma perda do controle da política monetária. Finalmente, os custos de ajustamento foram assimétricos e recaíram desproporcionalmente em países com moedas mais fracas, que experimentaram recessões mais severas.

Troca de moedas. O encontro do Grupo dos 20 (G-20) em 2009, no qual o Fundo Monetário Internacional (FMI) foi autorizado a imprimir uma grande quantidade dos Direitos de Saques Especiais (DSEs), deu início à possibilidade de se estabelecer os DSEs como uma nova moeda global de reserva.

Como os DSEs fazem parte das reservas internacionais dos governos e podem ser usados como garantias para empréstimos, eles podem efetivamente mudar a oferta monetária global. Os DSEs podem se tornar a nova e estável moeda mundial, com a vantagem de que não se submeteriam ao controle de nenhum país em particular.

Os Brics, no entanto, não estão esperando que os DSEs se tornem o novo dólar. Estes já têm tomado atitudes movendo-se do dólar para moedas locais em acordos de comércio bilateral. A China assinou vários contratos não só com os Brics, mas também com a Coreia do Sul, a Malásia e a Argentina para swaps de divisas, nos quais as moedas locais (particularmente o yuan) são usadas como meios para comércios bilaterais, em vez do dólar.

Esse comércio bilateral baseado em moeda local pode aumentar exponencialmente em breve. Tomemos o caso do Brasil e da China. O comércio total entre esses países se expandiu substancialmente na última década. As exportações do Brasil para a China tiveram um crescimento composto de 47% ao ano, enquanto as importações da China tiveram um crescimento composto de 38% ao ano durante esse mesmo período. A relação comercial de Brasil e China está prevista para crescer de US$ 50 bilhões para US$ 125 bilhões nos próximos cinco anos.

Os riscos atuais associados aos problemas da dívida soberana da União Europeia e dos Estados Unidos podem estimular o comércio internacional baseado em moedas dos próprios Brics. A tendência natural é de que os Brics se protejam contra o risco advindo de uma forte dependência do dólar, o que pode levar a uma nova moeda internacional, seja por meio dos DSEs, do comércio bilateral com moedas locais ou de uma nova moeda dos Brics. As consequências seriam uma acumulação adicional de reservas por estes países e a desvalorizações do dólar.

Futuro. O que o futuro reserva para a União Europeia? O modelo da zona do euro implica que a política monetária se concentre nas mãos do Banco Central Europeu (BCE), enquanto cada país-membro segue sua política fiscal individual. Desistir da política monetária no nível de cada país implica que choques de recessão só podem ser acomodados por expansões fiscais financiadas por dívidas. Por outro lado, a política monetária do BCE pode ser benéfica para alguns países em detrimento de outros. Por exemplo, o BCE pode agir com o intuito de conter ameaças inflacionárias em alguns países, que podem simultaneamente causar uma contração econômica grave em outros países.

A experiência recente tem demonstrado que os custos desse impacto desigual da política monetária e as disparidades na situação fiscal podem levar alguns dos países mais afetados a um default ou mesmo a saírem da União Europeia, o que ocasionaria uma grave crise financeira. A Inglaterra, mesmo com o seu contrato opt-out, tem vocalizado a possibilidade de sua saída da UE, antecipando os riscos do euro e os possíveis efeitos de um colapso na sua economia. A alternativa é que os membros da zona do euro harmonizem e coordenem as suas políticas fiscais nacionais. A Alemanha e a França estão dando os primeiros passos rumo a uma unidade fiscal, mas a convergência fiscal precisa ser generalizada a todos os países-membros, caso contrário um colapso do euro como moeda única pode estar iminente.