Título: A carroça vai virar
Autor: Netto, Andrei
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/11/2011, Economia, p. B6

"As pessoas nos garantem que a União Europeia conta com 27 membros. Claro que isso não é verdade. Na verdade, a União Europeia tem dois membros: Nicolas Sarkozy e Angela Merkel. Um francês e uma alemã. Em todas as reuniões de cúpula vemos apenas esses dois: uma gorda senhora loura e um senhor baixinho, moreno e cheio de tiques, andando apressados pelos corredores lado a lado, cabisbaixos, resmungando, afagando, distribuindo os golpes costumeiros contra um terceiro.

Em Cannes, o "duo infernal" se superou. Sarkozy e Merkel convocaram o grego George Papandreou. E o fizeram aguardar duas horas na sala de espera, para depois repreendê-lo, humilhá-lo, trucidá-lo e ditar para ele a pergunta que deveria apresentar aos gregos em um referendo. (E deu certo: já não se fala mais em consulta popular).

Em seguida, a dupla terrível convocou um outro "caso sério", o aluno Berlusconi. É preciso dizer que esse aluno travesso é incorrigível: além de ficar de olho nas meninas durante o recreio, ele nunca faz os deveres de casa e mente como um demônio. Há poucos dias prometeu aos dois "professores" um projeto de reformas. Ora, ao examinar sua carteira, foi verificado que não havia o mínimo projeto. Sarkozy ficou contrariado. Le Figaro, o jornal predileto do presidente francês, resumiu a cena. "O Eliseu colocou Berlusconi diante da alternativa: ou votar as reformas ou deixar o governo" . Imagine! E a soberania do país? E os outros chefes europeus? O que fazem? Nenhuma palavra.

Sem dúvida eles sonham. Ou também têm medo de ser liquidados e vão fumar um cigarro no banheiro. Onde está o eslovaco? E o sueco? E o português? Esse confisco da Europa pelos dois países é incompreensível. Vai na contracorrente dos objetivos que a Europa fixou quando começou sua aventura há 60 anos. O Velho Continente estava farto da diplomacia do "diktat", da força, os pequenos países sendo obrigados a se submeter a condições e restrições por vezes humilhantes, impostas pelos grandes, ou a aceitar um protetorado. Esta era a bela ambição dos países da Europa, em 1950. Ora, a cúpula do G-20 em Cannes mostra que, depois de 60 anos,a velha Europa continua existindo com a mesma arrogância dos fortes e o mesmo servilismo dos fracos.

Os médicos não estão inativos. Às centenas, eles se curvam sobre o leito onde definha docemente a Europa. Um dos seus veredictos é este: a zona do euro não progride porque não existe uma "autoridade supranacional" para harmonizar as ações dos 27 membros da UE. A única salvação da UE é transformar o caos atual numa federação.

Exato! É impossível fazer caminhar no mesmo passo 27 países heterogêneos e no entanto soberanos. É como se fizéssemos puxar uma carroça ao mesmo tempo por um boi, uma raposa, um mosquito, um tigre e um pinguim. Seria de espantar se ela não tombasse na primeira curva.

Eis porque os homens muito sábios, responsáveis, propõem que a União Europeia se converta numa federação, ou confederação. Mas o espetáculo que os europeus ofereceram durante a cúpula do G-20 cobre de ridículo um tal projeto. Está claro que os países da Europa recusam ceder a menor parcela da sua soberania em benefício de um organismo supranacional. A maneira como os dois maiores países europeus – Alemanha e França – torceram o braço dos pequenos recalcitrantes e reduziram a nada seus 25 colegas,mostra com brilho e cinismo o que muitos observadores sabem há muito tempo:o continente dos "Estados nacionais", das antigas monarquias, dos nacionalismos, egoísmos e da brutalidade diplomática é incapaz de esquecer seus hábitos infames.

É verdade que a construção europeia é jovem. Começou há apenas 60 anos. No seu milésimo aniversário, talvez... /TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINHO