Título: Em jogo o sonho europeu
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/11/2011, Notas e informações, p. A3

A União Europeia, a mais ambiciosa experiência de integração regional dos últimos cem anos, enfrenta muito mais que um enorme desafio econômico e financeiro criado pela crise das dívidas soberanas. O risco maior é político: mutilação, perda de peso no cenário internacional e paralisação de um processo - único e auspicioso - de criação de um amplo espaço multinacional de cidadania e de unificação de direitos. Até agora, a Comissão Europeia, os governos da Alemanha e da França e o Fundo Monetário Internacional (FMI) trabalharam para socorrer os países mais atolados na dívida pública, para evitar o contágio de outras economias, para impedir um desastre no mercado financeiro e para salvar o próprio euro. Desde 2008 a crise derrubou sete governos. O último foi o da Itália, a terceira maior potência econômica da união monetária. Na melhor hipótese, as mudanças darão certo, a zona do euro manterá sua integridade e a Europa retornará, embora lentamente, ao caminho da prosperidade e do sucesso. A tarefa dos novos tecnocratas grego e italiano - especialmente de Mario Monti, novo primeiro-ministro da Itália - ultrapassa suas agendas nacionais. O resultado de seu trabalho terá repercussões em todo o bloco. Mas alguns governos podem ser tentados - e alguns já estão sendo, segundo informações extraoficiais - a não esperar mais e a repensar sem demora o projeto comunitário.

Autoridades da Alemanha e da França, as duas maiores economias da zona do euro, já teriam começado a discutir uma reforma da união monetária e da própria União Europeia. A mudança poderia resultar na exclusão de alguns sócios ou, no mínimo, na oficialização de categorias diferentes de países. A distinção centro-periferia passaria a ter um sentido institucional. Por enquanto, é só uma figura de linguagem politicamente incorreta.

Embora não haja informação oficial sobre as conversas entre alemães e franceses, o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, decidiu defender num discurso o fortalecimento do bloco a partir de sua atual constituição. "Uma União Europeia dividida não funcionará", disse Barroso. Segundo ele, uma união com diferentes partes comprometidas com objetivos contraditórios e constituída por um núcleo e uma periferia desconectados seria insustentável e não poderia operar a longo prazo. "Na era da globalização", continuou, "a unificação da Europa é mais essencial do que nunca para preservar nosso modo de vida e nossos valores e para promover a prosperidade de nossos cidadãos."

Em sua peroração, o presidente da Comissão Europeia recorreu a um discurso repetido muitas vezes nos momentos mais críticos do Mercosul. "A solução para o Mercosul é mais Mercosul", repetiram em várias ocasiões autoridades do Brasil e da Argentina. Mas os defeitos do bloco sul-americano são mais elementares que os do europeu. O Mercosul é uma união aduaneira, mas nem chega a funcionar direito como zona de livre comércio. Deveria ser fácil corrigir essa deficiência, se os governos da região levassem a sério os objetivos econômicos do bloco.

A integração econômica europeia foi muito mais lenta e é muito mais sólida que a de qualquer outro bloco. Em nenhuma outra área a mobilidade de capitais e de mão de obra produziu efeitos tão notáveis. Além disso, houve avanços importantes na adoção de princípios políticos e jurídicos comuns e no rumo da constituição de uma cidadania comunitária. A memória da guerra foi certamente um estímulo poderosíssimo para tantas conquistas.

Mas a integração falhou num ponto fundamental - e isso teve consequências muito perigosas para a união monetária. Faltou uma efetiva articulação das políticas fiscais, um sistema disciplinar aplicável obrigatoriamente a cada país. O projeto de um controle fiscal centralizado foi esboçado há mais de um ano, mas não executado. Cada país cedeu um pouco de sua autonomia para adotar o euro. Deveria ceder também um pouco da independência orçamentária, numa iniciativa politicamente mais complicada. Por isso não basta controlar a crise das dívidas. Aprofundar a integração envolve em primeiro lugar uma disciplina fiscal comum, na direção, talvez, da formação de um Tesouro comum.