Título: Como uma boa ideia virou uma tragédia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2011, Economia, p. B15

O euro foi erguido sobre uma base de dívidas e enganos, em que princípios econômicos foram sacrificados por visões políticas românticas

Antes mesmo de Horst Reichenbach da Alemanha ter descido do avião em Atenas, os gregos sabiam quem estava chegando. Ele já havia recebido vários apelidos não lisonjeiros na mídia grega, incluindo "Terceiro Reichenbach" e "Horst Wessel" - uma referência ao ativista nazista desse nome que foi postumamente elevado à condição de mártir. Os membros de sua equipe de 30 pessoas, por sua vez, foram comparados a líderes regionais nazistas.

Os motoristas de táxi do aeroporto estão em greve, enquanto centenas de pessoas se reuniam diante do Parlamento, entoando slogans. Um manifestante estava usando uma camiseta com os dizeres: "Não preciso de sexo. O governo me f... todo dia." Nas primeiras horas, Horst Reichenbach percebeu que havia pousado numa área de desastre.

Reichenbach é o chefe da força-tarefa da Comissão Europeia enviada a Atenas para fornecer o que autoridades em Bruxelas chamam de "assistência técnica" na implementação das reformas. Para a mídia grega, a força-tarefa é a guarda avançada de uma força de invasão, os burocratas que chegaram para transformar a bela Grécia numa colônia alemã.

Reichenbach descreve suas tarefas da seguinte maneira: reestruturar o sistema fiscal, enxugar a administração, acelerar a privatização, fortalecer a segurança legal, abrir acesso a profissões protegidas, reestruturar os setores de energia e assistência médica e remover estruturas que sejam hostis ao investimento. O esforço, diz, requer "pensar em termos de anos em vez de meses". Ele foi vice-presidente do Banco Europeu para a Reconstrução e havia planejado se aposentar no fim de dezembro, mas recebeu um telefonema do presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, que o enviou para essa missão impossível. Ele é um intermediário entre duas Europas, a do norte e a do sul. O euro era para ser uma moeda que ajudaria a Europa a crescer em conjunto, mas a primeira grande crise do euro está jogando o norte contra o sul, a economia do marco alemão contra a economia da lira.

Para piorar as coisas, há também duas velocidades diferentes na Europa, com uma parte da Europa se movendo na velocidade acelerada de bancos e mercados financeiros, e a outra se arrastando na velocidade de governos e parlamentos. E há a Europa de duas versões da verdade. Uma está em casa em Bruxelas, Berlim e Paris, nos centros do poder, enquanto a outra reside nas salas de estar e nas ruas de cidades europeias.

Por admirável que seja Reichenbach e seus 30 construtores de nação trazerem ordem para Atenas, nenhuma quantidade de reorganização pode simplesmente eliminar US$ 473 bilhões em dívidas públicas.

Início. Como lidar com essa dívida sem arruinar o projeto europeu é a questão mais premente das últimas semanas. O projeto visionário, ousado, de criar uma moeda comum para países e populações diferentes não pode ser compreendido sem nos lembrarmos que o Muro de Berlim caiu no fim dos anos 1980, o mundo ainda sentia a 2.ª Guerra Mundial como um evento relativamente recente, e a Europa ainda discutia se a Alemanha poderia representar novamente uma ameaça.

Jacques Delors foi presidente da Comissão Europeia por 10 anos, e foi o principal autor do Tratado de Maastricht, que definiu as características básicas do euro. Agora, Delors é obrigado a ouvir as críticas diárias de como era ilusória sua visão de uma moeda comum. Mas se a sua proposta tivesse sido totalmente implementada, diz ele, a Europa estaria muito melhor equipada, teria uma constituição mais uniforme, e seria centralmente governada por uma Comissão cujo trabalho não seria constantemente solapado no Conselho Europeu, que reúne os chefes de Estado e de governo.

Delors sempre quis ir além da elite política com a qual lidava. Na época, essa elite era preenchida por europeus dedicados, pessoas como o presidente francês François Mitterrand, o chanceler alemão Helmut Kohl, o primeiro-ministro holandês Ruud Lubbers, e o premiê português Aníbal Cavaco Silva. Mas eles também não foram ousados o bastante para integrar os países em uma verdadeira coordenação europeia.

O Tratado de Maastricht, que marcou o estabelecimento da União Europeia quando foi assinado em 1992, tornou tudo isso possível. Ele colocou a Europa sobre "três colunas", a primeira das quais era uma coluna econômica, completa com uma "União Econômica e Monetária". O tratado proporcionou o arcabouço legal para que uma política financeira comum fosse concebível, bem como uma política fiscal e de taxa de juros coordenada.

Mas não houve vontade política para preencher o arcabouço de Maastricht.

Os "Estados Unidos da Europa" permaneceram pouco mais que uma frase de efeito. E, no entanto, a introdução do euro criou um fato consumado que não poderia mais ser revertido. Esse Big Bang europeu foi seguido por um processo de evolução durante o qual todos os detalhes deveriam ser resolvidos.

Símbolo. O mais importante é que a moeda comum era também um símbolo político. Delors diz que sempre percebeu a Grécia como muito distante, diferente e estranha. A aceitação no euro ocorreu cedo demais, acrescenta. Na época, porém, nos anos 90, políticos pegavam, microfones e diziam que a Europa era inconcebível sem Atenas, o "berço da democracia". E Portugal, com sua Revolução dos Cravos, seguramente também merecia fazer parte do clube. E os irlandeses, oprimidos por tanto tempo pelos britânicos, precisavam ser ajudados. E quem desejaria mostrar a porta para a Itália só por causa de seus altos custos trabalhistas e altas taxas de inflação? Assim foi que, quando a zona do euro virou realidade, elefantes como Alemanha e França se uniram a camundongos como Portugal, Irlanda e Luxemburgo. Países estáveis e prósperos do norte compartilharam sua moeda comum com países instáveis, subdesenvolvidos, do sul. Protestantes austeros misturados com católicos sensuais.

As promessas do euro foram registradas no Tratado de Maastricht. Ele seria uma moeda que tornaria a Europa forte num mundo globalizado competitivo; que aproximaria as economias europeias; que obrigaria países a limitar suas dívidas e déficits; que garantiria que nenhum país seria fiador das dívidas de outros; e promoveria a unidade política.

E os detalhes? Bem, eles seriam resolvidos depois.

Os gregos agarram a oportunidade Na Grécia, o euro alimentou esperanças de um futuro melhor. Em outubro de 1993, o socialista Andreas Papandreou foi reeleito primeiro-ministro. O então ministro das Finanças, Yiannos Papantoniou, recorda hoje que o gabinete de Papandreou rapidamente se convenceu que o ingresso da Grécia no euro era a única chance de resolver os problemas financeiros do país.

A Grécia estava afogada em dívidas. As dívidas alcançavam 114% do PIB. Atenas sofria com uma inflação de 14% e a economia estava encolhendo.

Qualquer economista poderia ter reconhecido que a Grécia não era competitiva, e que, sem impulsos externos, parecia incapaz de mudar sua situação. O euro e seu regime haveriam de provocar as reformas necessárias, e, em particular, facilitariam a obtenção de crédito.

Obter o ingresso na zona do euro tornou-se a missão do ministro das Finanças, Papantoniou.

Ele usou cada oportunidade para lembrar as pessoas da reivindicação grega. Quando os ministros das finanças da UE se reuniram em Bruxelas, em abril de 1997, para discutir como seria o novo dinheiro, ele propôs que as moedas fossem gravadas com letras latinas e gregas. O ministro das Finanças alemão, Theo Waigel, rejeitou a ideia.

A Grécia não estava em posição de fazer exigências, disse. E aí, virando-se para Papantoniou, acrescentou: "O senhor não faz, e não fará parte disto." Quando os dois ministros das finanças conversaram, mais tarde, Papantoniou apostou com Waigel que a Grécia conseguiria o euro. Foram precisos apenas alguns anos para ganhar sua aposta.

Waigel, que recentemente descreveu a aceitação da Grécia como um "pecado mortal", acabou se tornando um fã da Grécia, diz Papantoniou. "Foi Waigel que nos trouxe para o euro", diz. "É inverídico que ele se opôs a nossa adesão." Papantoniou refuta a acusação que seu país manipulou os números para obter o ingresso na zona do euro.

"Não fizemos nada diferente de todos os demais países", diz ele.

Artimanhas. Em seu livro O desafio do euro, Hans Tietmeyer, o então presidente do Bundesbank, o banco central da Alemanha, diz que uma "cirurgia cosmética questionável" foi realizada em alguns países para fazer os dados sobre taxas de inflação e endividamento público se adequarem aos requisitos do euro.

A dívida pública da Itália, em 115% do PIB, era drasticamente superior ao limite de endividamento de 60% acertado no Tratado de Maastricht. A Bélgica também violou maciçamente as provisões do tratado.

Na época, o presidente do Bundesbank, Tietmeyer, notou, com preocupação, que, em 1998, os europeus, inspirados pela magnitude de seu projeto, haviam eliminado o teste final sobre se um número suficiente de países satisfazia os requisitos para o euro. Eles já haviam decidido que o euro seria introduzido em 1º de janeiro de 2002. Numa reunião do governo alemão que devia tomar uma decisão sobre a moeda, Tietmeyer levantou suas objeções contra alguns candidatos ao euro - mas foi em vão.

O resultado da reunião já havia sido determinado anteriormente, e até sido declarado por escrito.

O chanceler alemão Helmut Kohl, que pertencia à escola de pensamento que jamais deveria haver nova guerra na Europa, queria a decisão histórica. Como recorda Tietmeyer, Khol disse solenemente: "Tomara possamos olhar para o euro daqui a 50 anos tão positivamente como fazemos hoje com o marco alemão." A coleta de dados foi deixada a cada país da UE, no fim dos anos 90, e os europeus confiavam uns nos outros.

Mas havia uma questão que não fora esclarecida: quando os números foram reunidos em Luxemburgo, o que ocorreria se a Eurostat, a organização encarregada de coligir os dados, descobrisse erros ou violações das regras? Que autoridade ou organismo implementaria sanções, e em que nível?

A Alemanha ainda estava preocupada com outras questões. Após 16 anos sob Kohl, uma coalizão do Partido Social Democrata (SPD) com o Partido Verde venceu a eleição em 1998.

Na Alemanha, era como o começo de uma nova era, mas havia pouco entusiasmo pelo projeto europeu. Para o novo chanceler, Gerard Schröder, o euro não era uma questão de guerra e paz. Schröder referia-se à nova moeda como "um bebê doentiamente prematuro".

Mas o euro era também uma moeda consistentemente política, diz Eichel.

Espanha, Portugal e Grécia eram ex-ditaduras militares. A forte conexão com a Europa, diz Eichel, era vista como meio de fortalecimento da democracia.

A democracia da Grécia recebeu a validação que desejava em 2000, quando a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu (BCE) concluíram que o país havia dado grandes passos nos dois anos anteriores. O BCE fez uma advertência contra os altos níveis de endividamento, mas a Comissão recomendou que a Grécia fosse admitida.

"A Grécia completou um processo bem-sucedido de convergência após um percurso longo e difícil", disse o ministro das Finanças, Eichel, ao parlamento alemão.

Papantoniou alcançara seu objetivo, vencendo sua aposta com Weigel. A Grécia se tornava membro do euro.

Mas isso significou que os tratados europeus não valiam o papel em que estavam impressos. A dívida da Grécia não estava em 60% do PIB, o máximo requerido, mas em mais de 100%. E, mesmo naquela época, já havia dúvidas sobre os números de Atenas.

Críticos. Houve vozes contrárias na sociedade, particularmente na Alemanha, onde o marco alemão não era um simples meio de pagamento, mas um símbolo do milagre econômico e da reconstrução no pós-guerra. Os anos 90 foram uma década de disputas sobre o euro.

Em 1992, por exemplo, 62 professores alemães emitiram uma advertência contra a introdução do euro.

Eles temiam que a união monetária "exporia a Europa ocidental a fortes flutuações econômicas, que, no futuro previsível, poderia levar a um ácido teste político". No fim, a vontade política prevaleceu sobre as objeções econômicas. Em abril de 1998, as duas câmaras do Parlamento alemão autorizaram o último passo para a união monetária.

Depois disso, sempre que uma autoridade do governo falava contra o euro, isso causava uma enorme comoção na Europa. Hans Reckers, o presidente do banco central do estado alemão de Hesse, aprendeu isso quando ousou expressar seus receios.

Reckers era membro do conselho executivo do Bundesbank. Em abril de 2000, perto do fim de um pronunciamento para um punhado de jornalistas financeiros na sala de conferências do banco central estadual, ele disse: "No meu entender, a Grécia não está de maneira nenhuma pronta para a união monetária. Seu ingresso deve ser adiado por pelo menos um ano." Bastaram 20 minutos para saírem as primeiras reportagens das agências noticiosas, e outros cinco para os preços começaram a despencar na Bolsa de Atenas, obrigando o banco central da Grécia a comprar dracmas para impedir sua queda. Eichel, o ministro das Finanças, telefonou para o presidente do Bundesbank, Ernst Welteke, e Welteke telefonou para Reckers, que foi prontamente amordaçado. Mas hoje Reckers afirma que todos os 15 diretores do conselho executivo do Bundesbank sentiam que o ingresso da Grécia era um erro.

Um erro, diziam, que poderia ser absorvido por ser a Grécia um país muito pequeno.

Os verdadeiros problemas não foram enfrentados na esteira da introdução do euro em 1º de janeiro de 2002.

Apesar de todas as declarações de intenções em Maastricht, os 12 novos países do euro elevaram sua dúvida em mais de 600 bilhões nos cinco anos de preparação para a introdução do euro. No fim de 2002, eles tinham uma dívida combinada de 4,9 trilhões, sendo que só a Itália computava 1,3 trilhão.

Ceticismo. Do outro lado do Atlântico, economistas americanos estavam atarefados examinando planos da Europa, que consideravam mal alinhavados e "exagerados", nas palavras do economista Kenneth Rogoff, consultor de governos mundo afora.

Quando o euro se tornou uma moeda real, Rogoff havia acabado de assumir o posto de economista-chefe do FMI, e estava lecionando em Princeton quando o euro começou a tomar forma nos anos 90. Ele concordou com a visão de seus colegas americanos de que o euro fora concebido "numa escala grande demais".

Rogoff observou que uma disputa transatlântica estava se desenvolvendo. Os americanos e os europeus, que geralmente concordavam nas questões macroeconômicas, estavam discutindo quase às vias dos insultos. Os europeus acusavam seus colegas de não reconhecerem os processos históricos, a visão grandiosa e o grande salto para frente da Europa. Os americanos, secos e pragmáticos, acusavam os europeus de menosprezarem os riscos. De novo, eles sentiam que a Velha Europa estava sendo romântica e cega para a realidade.

Rogoff encontrou, porém, algumas boas ideias na obra da UE. O critério da dívida de Maastricht, por exemplo, continua sendo uma ideia válida e brilhante até hoje, diz. Rogoff está convencido que estabelecer um limite superior para a relação entre dívida pública e PIB em 60% se mostrou um grande sucesso.

"Era uma coisa nova", diz. "Foi um grande insight." O único problema, como logo se tornou visível, foi que os europeus tinham uma tendência a trair seus próprio ideais. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK