Título: Casar mortos, tradição que resistiu a Mao
Autor: Trevisan, Claúdia
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2011, Internacional, p. A26

Segundo crença milenar, chineses que morrem solteiros precisam de uma noiva cadáver e famílias pagam dote por casamento no além

Quando Yang Xin Hua e Li Na se casaram, no dia 18, ambos já estavam mortos. Vítima de um acidente de trabalho, Yang havia sido enterrado dois anos antes e, desde então, sua família procurava o corpo de uma mulher que pudesse se unir a ele no além. A busca terminou no mês passado, quando Li morreu de complicações cardíacas e seus pais concordaram com o matrimônio, em troca de um "dote" de 100 mil yuans (R$ 28,4 mil).

Duramente reprimida durante os anos do maoismo e da Revolução Cultural (1966-1976), a tradição milenar de "casamentos fantasmas" renasceu com força depois do processo de abertura iniciado em 1978 e ganhou ainda mais popularidade em anos recentes. A prosperidade econômica e o dinheiro movimentado pela indústria do carvão em províncias como Shaanxi inflacionaram esse mercado, no qual o preço do corpo de uma mulher jovem pode chegar a 200 mil yuans (R$ 57 mil).

Os 100 mil yuans que desembolsou pela noiva do filho equivalem a cinco vezes a renda anual do camponês Yang Yu Lin, de 55 anos. "Um corpo custa mais caro do que uma pessoa viva", disse sua mulher, Shi Cui E, de 52.

O dinheiro saiu da indenização de 200 mil yuans que a família recebeu da empresa onde o filho trabalhava. Yang Xin Hua tinha 20 anos quando a retroescavadeira que dirigia caiu em uma ribanceira, provocando sua morte.

De acordo com a tradição chinesa, homens solteiros com mais de 12 anos não podem ser enterrados sem uma mulher. Se isso ocorrer, acredita-se que infortúnios atingirão sua família, incluindo as futuras gerações.

Como nem sempre é possível encontrar uma "noiva cadáver" de maneira imediata, muitos casamentos ocorrem anos depois da morte. No caso de Yang Xin Hua, seus pais exumaram seu corpo, o vestiram com roupas apropriadas e realizaram a cerimônia com o corpo de Li Na, morta aos 22 anos, também vestida para a ocasião e acompanhada de seus pais. O casal foi enterrado numa nova tumba, na qual foram colocados utensílios de uso cotidiano, como pratos, toalhas, pentes, espelhos e bonecos de papel imitando serviçais.

Na parede da casa dos pais do noivo, está pendurada uma montagem com as fotos de Yang Xin Hua e Li Na. Os dois nunca se encontraram em vida, mas estão emoldurados numa típica foto de família e enterrados lado a lado. "Estou aliviado. Agora ele vai ter uma vida melhor no além", disse seu pai ao Estado.

O camponês trabalha como operário na construção civil e ganha cerca de 20 mil yuans (R$ 5,7 mil) por ano. Sua mulher não trabalha e a família não tem assistência médica gratuita nem Previdência Social. Ainda assim, gastaram quase 70 mil com o casamento, além dos 100 mil dados à família da noiva.

O valor incluiu o pagamento de intermediários, o transporte do corpo, que estava em uma vila a 120 km de distância, a contratação de pessoas que realizaram o enterro-casamento, a compra de roupas e dos objetos colocados na tumba e a contratação de músicos para tocar na cerimônia. "Era necessário. Essa foi a última vez em que gastamos dinheiro com nosso filho", justificou Yang.

O governo chinês conseguiu instituir a prática da cremação nos grandes centros urbanos, mas os enterros continuam a ser utilizados na zona rural, onde vive mais da metade da população do país. Com eles sobreviveram os "casamentos fantasmas", apesar do violento ataque às tradições lançado no período de Mao Tsé-tung, que ocupou o poder da China de 1949 até sua morte, em 1976.

A prática não é encontrada em todo o interior do país. É mais frequente em certas regiões das províncias de Shaanxi, Shanxi, Henan, Hebei e Shandong e do município de Tianjin, segundo o professor de Cultura Popular da Universidade de Xangai Huang Jingchun, em entrevista por telefone.

A força das crenças ancestrais fica evidente no fato de que um dos locais em que a prática persiste é a cidade de Yan'an, principal base comunista durante a guerra civil contra os nacionalistas e ícone do "turismo revolucionário" na China.

A poucos quilômetros do local onde Mao e seus camaradas viveram, fica a Rua Ermalu, onde estão as lojas que vendem materiais utilizados em funerais. Ninguém se mostrou surpreso quando uma chinesa perguntou se eles poderiam ajudá-la a encontrar um corpo para seu primo recém-falecido. Segundo cinco pessoas consultadas, o preço médio vai de 70 mil a 80 mil yuans (R$ 23mil), mas pode atingir 200 mil yuans (R$ 57mil).

No maior hospital da cidade, um funcionário do necrotério estabeleceu o preço em 200 mil yuans, sem barganha, e disse que era necessário esperar. Em seguida, deu à chinesa um caderno com uma longa lista de nomes e telefones de pessoas em busca de corpos e pediu que ela escrevesse o seu número.

"Celebrar 'casamentos fantasmas' não é mais um segredo. As famílias até divulgam o fato, para mostrar aos outros que cumpriram suas obrigações com seus filhos e filhas", afirmou o professor Huang.

Não há estatísticas sobre números de uniões de pessoas mortas, mas todas as pessoas que a reportagem do Estado entrevistou durante três dias em Shaanxi falaram do assunto como algo longe de ser incomum.