Título: O paradoxo argentino
Autor: Palacios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2011, Internacional, p. A12/16

Votação de hoje na Argentina é, ao mesmo tempo, a de maior participação e a mais irrelevante desde 1983

Um paradoxo singular é o dessa eleição na Argentina: a de maior participação e, ao mesmo tempo, a mais irrelevante desde que a democracia foi restaurada. A presidente Cristina Kirchner será reeleita no primeiro turno com um apoio esmagador, na mais previsível e menos competitiva votação desde 1983.

O suspense se limita a saber quanto Cristina terá acima dos 50,2% obtidos nas primárias e qual será a diferença com relação ao grupo dos distantes concorrentes. Dessa margem dependerá quantos deputados conseguirão colocar no próximo Congresso as forças dos candidatos Hermes Binner, Ricardo Alfonsín, Eduardo Duhalde, Alberto Rodríguez Saá, Eliza Carrió e Jorge Altamira.

Os mandatos de Néstor Kirchner (2003-2007) e de sua mulher Cristina Fernández de Kirchner (2007-2011) foram tributários e se beneficiaram do período mais longo de crescimento econômico e de continuidade democrática da história do país.

As medidas implementadas para restaurar a autoridade política, refazer o tecido social, recompor o mercado interno e recuperar a autoestima nacional obtiveram resultados. Os casos de corrupção, a condução arbitrária do aparelho estatal, a beligerância e a perseguição à imprensa crítica acabaram sendo aceitos ou relativizados diante dessas realizações. A inesperada morte de Néstor, há um ano, acrescentou ao mandato de sua sucessora um conteúdo épico e emocional que consolidou sua liderança.

Como já se sabe quem governará nos próximos quatro anos, está em jogo agora como as coisas ficarão no Congresso, concluído o biênio em que a base governista se manteve numa posição minoritária. É muito provável que a coalizão de Cristina recupere a maioria de deputados e aumente o controle no Senado.

A situação é ainda mais desfavorável para a oposição, mais fragmentada. O que significa que o governo poderá manipular o Congresso e, enfim, propor uma reforma constitucional para tentar introduzir uma cláusula permitindo uma reeleição presidencial por tempo indefinido.

Não será fácil atingir esse objetivo. Com base em projeções, a aliança governista poderá contar, a partir de 10 de dezembro, com cerca de 130 deputados e 37 ou 38 senadores - um total de cerca de 170 legisladores. Para reformar a Constituição serão necessários dois terços em ambas as câmaras, ou seja 219.

A questão da reeleição será, por hora, mais um recurso eficaz para o kirchnerismo do que uma hipótese possível. Servirá para manter a oposição em litígio, obrigando cada parte a adotar posições ou de confronto ou de cooperação. Ao mesmo tempo, permitirá congelar a carreira do Partido Justicialista em termos sucessórios com "todo o poder para Cristina".

A Argentina, porém, não é nem será uma monarquia eleita ou uma democracia plebiscitária de partido único. É uma república democrática formada por maiorias e minorias e por uma sociedade refratária aos "unicatos" (concentração de poder nas mãos do presidente) e às pretensões hegemônicas. Uma presidência com apoio majoritário renovado, um governo com recursos fiscais, capacidade de intervir nos mercados e com políticas sociais ativas enfrentará um horizonte mais problemático. No primeiro caso, são a crise financeira internacional, a exposição às flutuações dos preços das commodities, a dependência da soja e a dependência do Brasil. No âmbito doméstico, a inflação, a insegurança, a persistente e desigualdade social, o enfraquecimento das instituições de controle e dos contrapesos republicanos. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO