Título: O fim de Kadafi e o início das transições árabes
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2011, Internacional, p. A18

Primeira consequência da queda de ditadores da primavera árabe, eleição tunisiana ilustra a complexa relação de forças nas novas democracias

Como a fuga do ditador da Tunísia ou o julgamento do ditador do Egito, a captura do coronel Muamar Kadafi na tarde de quinta-feira cativou as atenções no mundo árabe, transmitindo uma impressão renovada de possibilidades. Mas as fotografias do seu corpo ensanguentado que circularam momentos mais tarde nos celulares e nas telas de TV logo temperaram o momento de comemoração com um lembrete dos muitos conflitos ainda não solucionados que a primavera árabe também desencadeou.

"Isso não é justiça", disse o ativista sírio Mustafa Haid, 32 anos, ao assistir a transmissão da Al-Jazira num escritório em Beirute. Ele afirmou que o coronel Kadafi deveria ter sido levado a julgamento e os crimes dele deveriam ser investigados, reconciliando a Líbia com o respeito à lei, mostrando que ainda espera resultados melhores dos levantes regionais que começaram com manifestações pacíficas de união nacional em Túnis e no Cairo.

Em toda a região, o sangrento fim do coronel Kadafi chamou atenção para a crescente conscientização em relação aos desafios que há pela frente: o cumprimento da lei evitando as vinganças, a impaciência pelos empregos num momento de lenta recuperação econômica, a fidelidade ao Islã versus a tolerância das minorias, e a necessidade de promover a estabilidade num momento em que muitos buscam derrubar os pilares dos antigos governos.

"Para todos nós, o caminho é difícil, pois a batalha que travamos é contra nós mesmos", disse Ahmed Ounaies, ex-embaixador da Tunísia que atuou brevemente como ministro das Relações Exteriores depois da deposição do presidente Zine el-Abidine Ben Ali. "Temos de dar ouvidos aos nossos valores, nossas aspirações, nosso presente, em detrimento de todo o passado que vivemos. Trata-se de uma provação difícil, e o sucesso não é garantido." O rumo tomado pela Líbia é sob muitos aspectos o mais tortuoso dentre todas as revoluções no Norte da África. Quando o coronel Kadafi chegou ao poder 42 anos atrás, a Líbia estava dividida em três províncias que mantinham uma vaga confederação e dúzias de tribos insulares. Ele transformou a Líbia num país unificado erguido em torno do bizarro culto à sua própria personalidade. Ele não edificou nenhuma instituição nacional; insistiu em dizer que a Líbia era uma democracia direta de comitês populares sem necessidade de um governo - algo que poderia representar um desafio ao poder dele.

Mesmo depois de fugir de Trípoli, a tentativa de capturá-lo tornou-se um vínculo capaz de manter unida a branda confederação de brigadas locais que derrubou o governo dele. O governo provisório de Benghazi, incapaz de resolver uma disputa entre os muitos centros de poder em relação à distribuição dos cargos do governo, adiou um prometido remanejamento até que fosse concluída a captura do último reduto e esconderijo de Kadafi, Sirte, o que significa que esse trabalho deve ser retomado em breve.

"A Líbia vai passar por um período terrível", disse Lisa Anderson, cientista política que estuda a Líbia. "Durante muito tempo, aquilo que os manteve unidos foi uma espécie de fascínio mórbido por Kadafi e, até há pouco, todos tinham a sensação de que, se o corpo dele não fosse visto, ainda seria possível para ele algum tipo de retorno ao poder, como um vampiro", disse Lisa, presidente da Universidade Americana no Cairo. Quando a euforia diminuir, "eles não terão uma única instituição crível em todo o país com a qual possam contar", disse ela. "Não haverá mais nada para mantê-los unidos."

A Tunísia, que deve realizar suas primeiras eleições livres hoje, pode ser o Estado árabe em melhor posição para protagonizar uma transição bem sucedida, tornando-se uma democracia liberal. Entre os fatores que favorecem a situação no país estão sua população, relativamente pequena e homogênea, de aproximadamente 12 milhões de pessoas, o nível de ensino relativamente alto, uma grande classe média, um exército apolítico, um movimento islâmico moderado e um longo histórico de identidade nacional unificada.

Na ausência da mão firme de Ben Ali, a elite tunisiana tem se mostrado amargamente dividida diante de muitas das questões que a Líbia em breve terá de enfrentar, especialmente o papel desempenhado pelo Islã na sua nova sociedade, na legislação e no governo. Nos últimos dias da campanha eleitoral, o principal partido liberal secular prometeu tentar estabelecer uma coalizão de governo que exclua os radicais islâmicos, enquanto o líder dos muçulmanos disse que os membros do seu partido "tomariam as ruas" se considerassem o resultado da eleição manipulado.

Tunísia e Egito não foram capazes de resolver a frustração das legiões de jovens desempregados que participaram das revoltas por motivos práticos e diretos, não pela defesa das liberdades civis ou por idealismo. Na cidade de Kasserine, no sul da Tunísia, muitos dizem estar tão desiludidos com a ausência de mudanças - principalmente a falta de empregos - desde o início da revolução que nem mesmo pretendem participar das eleições. "Esperam que eu vote para que os políticos possam se sentar em poltronas confortáveis?" disse Mabrouka Nbarki, 43 anos, cujo filho de 17 anos esteve entre as dúzias de jovens mortos em Kasserine durante a revolta.

"Que motivo eu teria para votar?" disse ela, chorando. "Não há razão para fazê-lo." Ela disse que seu filho de sete anos sonhava em crescer e se tornar policial para poder levar a justiça a quem quer que tenha sido o responsável por balear o irmão mais velho. Mas o garoto mais novo morreu em decorrência de uma febre. A mãe acredita que a causa tenha sido o coração partido com a morte do primogênito.

Além de um quadro de pobreza e analfabetismo mais generalizados, o Egito enfrenta também profundas tensões sectárias. Seu movimento islâmico vê-se dividido entre facções ansiosas para incorporar códigos morais islâmicos à lei civil do país e outras comprometidas com a tolerância liberal. O debate aberto em relação ao futuro do país ampliou as tensões com a minoria cristã copta, que corresponde a aproximadamente 10% da população.

Há também a bênção ambígua do Exército egípcio. Apesar de as forças armadas terem proporcionado o tipo de estrutura nacional necessário para uma mudança no governo - algo que faltou à Líbia -, seu contínuo controle do país desde a deposição do presidente Hosni Mubarak tem levado muitos a questionar se o termo correto seria "revolução" ou "golpe". A maioria das figuras políticas acredita que o Exército esteja à espera de garantias da sua autonomia e influência sob o próximo governo civil.

"As pessoas que viram os benefícios iniciais da participação do Exército estão agora vendo também os custos", disse Lisa, da Universidade Americana no Cairo. "Cada um terá de decidir até que ponto poderá suportar tais custos, incluindo o Conselho Supremo das Forças Armadas." Ainda assim, o Exército pareceu estar envolvido numa negociação gradual na direção de "uma forma de governo mais controlada pelos civis", disse ela. "Ninguém jamais abriu mão do poder sem promover uma negociação."

Alguns na região dizem agora esperar que o sucesso da insurreição líbia na deposição do coronel Kadafi sem precisar do auxílio de uma instituição como o Exército egípcio, e recorrendo à força das armas em lugar dos argumentos morais, poderia incentivar ativistas envolvidos em conflitos violentos em outros países, principalmente na Síria e no Iêmen.

O Iêmen do presidente Ali Abdullah Saleh, dotado de um Estado enfraquecido, um Exército nacional dividido e fortes filiações tribais, pode ser a analogia mais próxima da Líbia na região - excluídas as reservas de petróleo, segundo Paul Sullivan, cientista político de Georgetown.

"A brutalidade do regime Assad na Síria e do regime Saleh no Iêmen ainda é sentida", disse ele. "Com a morte de Muamar Kadafi, a luz no fim do túnel torna-se bem mais clara." Ele acrescentou que é igualmente possível que a Líbia siga o rumo do Iêmen e mergulhe no caos. "Ainda existe na Líbia a possibilidade de o país se tornar um Estado falido", disse ele.

Ainda assim, Ounaies, o ex-embaixador da Tunísia, defendeu que sob certos aspectos o governo do coronel Kadafi tinha preparado o povo líbio para evitar tal destino. "Agora eles estão muito bem treinados para recusar o governo de um único líder ou partido", disse ele.

"E essa vivência em libertações conquistadas de dentro é em si uma experiência de união nacional e integração", disse ele. "Por meio do martírio, do sacrifício e do heroísmo, eles construíram uma robusta união, uma Líbia forte, e isso é muito importante para se erguer um país." / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL