Título: Poder civil, já
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/11/2011, Notas e informações, p. A3

Cada caso de sucesso é um caso à parte no curso da conturbada primavera árabe, que completará um ano em janeiro. Na Tunísia, o primeiro país onde o povo na rua pôs abaixo uma tirania, na vasta região que vai da África do Norte à Península Arábica, dez meses depois eleições parlamentares livres abriram caminho para a formação, ainda por se consumar, de um governo legítimo. Na Líbia, ao cabo de oito meses de guerra civil, um governo provisório se instalou em Trípoli, mas a efetiva democratização do país parece uma miragem. No Egito, bastaram 18 dias de protestos para apear Hosni Mubarak. No Iêmen, a queda de Ali Abdullah Saleh, na quarta-feira, levou dez meses.

Nesses dois países, porém, as manifestações prosseguem. Os iemenitas acampados em Sanaa, a capital, rejeitam o acordo com a oposição, mediado pela ONU e a Arábia Saudita, segundo o qual o ditador se comprometeu a ceder o lugar em 30 dias para o seu vice. Este, por sua vez, formará um governo de união nacional e convocará eleições no prazo de três meses. Em troca da renúncia, Saleh recebeu garantias de imunidade - o que enfurece os ativistas, dos quais mais de 200 foram mortos no correr dos protestos. "Os crimes de Saleh não desaparecerão com o tempo", argumenta uma estudante. "Portanto, nós o perseguiremos até o fim." É improvável que o consigam: ele deve se asilar no reino saudita.

Já no Egito, o clima é de insurreição - e ninguém ousa prever o dia de amanhã. No fim da semana passada, depois de nove meses, os jovens voltaram a ocupar a Praça Tahrir, no Cairo, para denunciar a continuidade do regime de arbítrio de Mubarak, agora sob o controle dos seus camaradas do Conselho Supremo das Forças Armadas, e pela relutância da junta em promover a prometida transição para a democracia, evitando, por exemplo, marcar a data da eleição presidencial. A gota d'água foi um comunicado deixando escancarada a vontade da cúpula militar de continuar tutelando o país.

O texto estipula que as Forças Armadas indicarão 80 dos 100 membros da comissão constitucional a ser formada pelo Parlamento a tomar posse em março, depois de um arrastado ciclo eleitoral a se iniciar na próxima segunda-feira. Além disso, a futura Constituição não abrangerá assuntos militares, como o orçamento das Três Armas, os seus amplos poderes no campo econômico e a prerrogativa da última palavra em matéria de defesa e política externa. A repressão policial aos novos protestos comprovou que o passado não passou no Egito. Em três dias, 33 manifestantes foram mortos à bala e mais de mil ficaram feridos - o que só radicalizou o movimento.

Um desconcertado Mohamed Hussein Tantawi, o marechal de campo que foi ministro da Defesa de Mubarak e comanda o Conselho Supremo, foi à TV anunciar que as eleições para presidente se realizarão em junho do ano que vem e que os militares estão prontos a entregar o mando aos civis, se assim o povo decidir em um plebiscito - em data indefinida. O único efeito do pronunciamento foi aglutinar os protestos em torno de uma única palavra de ordem, o equivalente a "Poder civil, já". A destituição de Tantawi, o desmanche da junta e a formação (não está claro como) de um "governo de salvação nacional" ganharam precedência sobre o cumprimento do calendário eleitoral, a nova Constituição e até a eleição presidencial.

Ontem, um dia depois de um dos piores confrontos do ano, quando a polícia atacou os manifestantes com um tipo devastador de bombas de gás, matando cinco deles e ferindo muitas centenas - antes que tropas do Exército enfim se interpusessem -, dois generais, falando pelo Conselho Supremo, pediram inéditas desculpas pela morte dos "mártires dos leais filhos do Egito". Um deles, Muhammad al-Assar, pediu para não serem comparados ao regime de Mubarak. Mas é exatamente o que pensa o movimento democrático. O seu drama é não ter um líder nacional que possa assumir um governo para remover o entulho autoritário de 60 anos de hegemonia política armada enquanto prepara o futuro. A única força civil organizada no país é a Irmandade Muçulmana - e ela, por oportunismo, prefere dialogar com os militares.