Título: Lição histórica da Líbia ainda precisa ser decifrada
Autor: Cowell, Alan
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/10/2011, Internacional, p. A24

A morte de Muamar Kadafi, considerada o momento fundador de um novo país, pode ter oferecido um início muito mais ambíguo e falho à iconografia da libertação líbia

Há um momento nas vidas de países reinventados em que sua libertação se torna uma lenda fundadora, moldando o panorama de gerações futuras, quando o momento inebriante de liberdade abre o primeiro capítulo de uma nova narrativa nacional.

O momento nem sempre é indiscutível, ou mesmo um reflexo da realidade. Os mitos de uma nação podem persistir ou não diante dos questionamentos e revisões dos historiadores. Pelo prisma da verdade recebida, um único evento pode acumular múltiplas interpretações: basta pensar na libertação de Paris, em 1944, reivindicada tanto pelos americanos quanto pelos franceses; ou a queda de Berlim, alguns meses depois (heroísmo soviético ou barbarismo do Exército Vermelho?).

No passado, novos líderes aspiravam a fixar o momento de renovação no tempo, no espaço e na memória com uma imagem única e duradoura: o general Charles de Gaulle marchando ao longo da Champs Elysées; os soldados de Moscou desfraldando a bandeira vermelha sobre o Reichstag em ruínas. Mas a era dos vídeos de telefones celulares e sua disseminação viral pelo Twitter ou YouTube nega essa hagiografia simples aos propagandistas.

Com efeito, a morte do coronel Muamar Kadafi - certamente o momento fundador de uma nova Líbia - pode ter sinalizado um exemplo mais recente, oferecendo um início muito mais ambíguo e falho à iconografia da libertação da Líbia.

Aqui está, captado por telefone celular, o "líder irmão" ensanguentado, mas vivo, protestando com seus captores, tão reconhecível no manto esfarrapado do ditador em desgraça quanto o desgrenhado Saddam Hussein saindo de sua toca de esconderijo no Iraque.

Aqui está o mesmo homem, misteriosamente morto a tiros. Aqui está um porta-voz dos novos líderes da Líbia insistindo em que Kadafi foi apanhado num fogo cruzado quando as imagens que rodopiam no ciberespaço sugerem que ele foi morto por seus inimigos agindo com a absoluta autoridade e sede de sangue de um grupo de linchamento.

Aqui está, finalmente, após 42 anos de um poder brutal, absoluto, bizarro e assassino, o coronel deitado para apodrecer no chão de concreto de uma câmara frigorífica em Misrata antes de seu sepultamento secreto no deserto.

Se essa sequência de imagens inspira o quinto capítulo da era pós-Kadafi, então a nova Líbia terá como base uma lenda não o heroísmo de seus libertadores - as milícias que resistiram ao massacre das forças pró-Kadafi -, mas de ambiguidade moral e autoridade duvidosa, de recurso à inverdade diante de evidências indigestas.

Essa impressão pareceu se aprofundar com relatos da Human Rights Watch de que os corpos de 53 kadafistas haviam sido encontrados na recém-libertada Sirte - terra natal e reduto final de Kadafi - em circunstâncias que sugeriam uma execução sumária. "Esse último massacre parece parte de uma tendência de matanças, saques e outros abusos cometidos por combatentes anti-Kadafi que se consideram acima da lei", disse Peter Bouckaert, um representante da Human Rights Watch.

As mesmas apreensões foram manifestadas por representantes de Grã-Bretanha, França e outros aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) cuja campanha aérea repeliu as forças de Kadafi.

Evidentemente, há uma dose de imperialismo cultural na insistência de estrangeiros sobre a adoção de seus códigos morais em terras - particularmente no mundo islâmico - onde forças militares ocidentais moldaram eventos tão vividamente como fizeram no Iraque, Afeganistão e agora Líbia. Aliás, enquanto a campanha aérea da Otan se desenrolava, alguns aliados de Kadafi - na África e na Rússia, em particular - argumentavam que a aliança havia extrapolado seu mandato formal do Conselho de Segurança da ONU para proteger vidas civis, mas não para facilitar uma mudança de regime.

Se a narrativa de fundação da Líbia pós-Kadafi for algum dia submetida a um esclarecimento histórico, pode ocorrer que o papel da Otan ao atacar e conter o comboio de veículos em que Kadafi aparentemente tentava fugir, na semana passada - expondo-o diretamente à ira de seus inimigos - será vista à mesma luz que o espetáculo de soldados americanos derrubando a estátua de Saddam Hussein em Bagdá em 2003.

Em outras palavras, sem os ataques aéreos da Otan, o exército improvisado que tomou as ruas de cidades líbias em fevereiro provavelmente teria enfrentado uma batalha muito mais dura, incerta e sangrenta para encerrar a ditadura de Kadafi. Ele poderia até ter fracassado. Poucos países, se é que há algum, gostam de reconhecer o papel de estranhos na derrota de seus inimigos. As paixões desencadeadas pela libertação raramente são claras ou livres de acertos de contas e vergonhas: considerem-se os excessos dos expurgos franceses de suspeitos de colaboração com o nazismo - a chamada Épuration - após a 2.ª Guerra.

Esses temores não parecem encontrar eco entre os líbios que estão simplesmente aliviados com a vitória e a remoção de seu tiranizador do poder. Aliás, alguns relatos de Trípoli sugerem que os combatentes acusados de atirar na cabeça de Kadafi são heróis nacionais. Além disso, é difícil evitar a impressão de que os mundos nebulosos das agências de inteligência, que primeiro qualificaram Kadafi como um patrocinador do terrorismo, depois colaboraram com ele após o coronel decidir colaborar com o Ocidente há menos de uma década, podem ter ficado aliviados que lhe tenham negado a oportunidade de se desvencilhar de seus muito segredos.

"A visão de Kadafi no Tribunal Penal Internacional teria sido um poderoso sinal aos maus governantes de todas as partes", escreveu Richard Dalton, um ex-embaixador britânico na Líbia em The Independent no domingo. "Mas encerrar tão decisivamente o acerto com o passado pode ser mais uma ajuda que um obstáculo ao progresso da Líbia no momento." / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK