Título: Não tive como ir à escola
Autor: Saldaña, Paulo ; Bugarelli, Rodrigo
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2011, Vida, p. A28/29

A pernambucana Luiza Vicentina Ramos da Silva, de 101 anos, conta com voz clara os detalhes do que viu e viveu. Fala sem parar e com vontade, lembra-se de datas com precisão - como o distante 30 de novembro de 1933, dia em que casou com o pai dos seus três filhos. Com 19 irmãos, Luiza nunca aprendeu a ler - a exemplo do que ocorre com mais de 60% dos centenários brasileiros. "Como iria para escola? Minha mãe com um monte de filhos, eu tinha de ajudar."

O trabalho que dependia de Luiza era na roça. Ajudava na colheita de café e de algodão na cidade de Garanhuns (PE), onde nasceu. Também morou na cidade vizinha de Bom Conselho e outros 30 anos na capital do Estado. "Conheci o presidente Getúlio Vargas, coloquei o braço no ombro dele uma vez, lá no Recife."

Entre 1940 e 1943, viveu em São Paulo, capital. "Viemos de barco, um muito bom, gostoso. Nem tinha ônibus, estradas." Na volta a Pernambuco, dessa vez arriscando de ônibus e trem, demoraram quase três meses para chegar a Garanhuns. Paravam a cada cidade, à espera da saída da próxima condução.

Em 1973, "em agosto", já no segundo casamento, chegou definitivamente a São Paulo - onde lavou roupa, cozinhou, fez faxina. Desde nova, nunca foi de beber ou fumar. "Só fumei aos 8 anos, um cigarro que se chamava Lafaiete, que vendiam para o meu pai. Era bom que dava vontade de comer. Mas os outros não eram tão bons e aí não fumei mais."

Luiza morou em vários bairros da capital paulista, a maioria na zona leste. Há dois anos vive na casa da comerciante Conceição Aparecida dos Santos, de 57 anos, em uma ladeira do Artur Alvim. "Ela não chega a acordar cedo, mas antes do almoço tem todo o ritual do banho. Aí, dorme e acorda a todo instante", diz Cida, como é conhecida. "Durmo ao lado, em um colchão no chão, para ela não ficar só. Tem vez que ela fala tanto de manhã que eu tenho de ir para outro quarto", brinca.

As duas nem sequer são parentes. Se conheceram há dois anos, quando Luiza apareceu na porta da comerciante, de madrugada, fugindo dos maus-tratos da neta - que mora no mesmo bairro. Cida cuidou dela. E ainda hoje cuida - apesar da lucidez, a centenária necessita de auxílio para ficar de pé, ir ao banheiro e tomar os remédios. "Ela nunca havia ficado doente, mas há dois meses teve água no pulmão e ficou até internada." Cida passou 15 dias no hospital com a amiga, dormindo em um sofá.

Com lágrimas nos olhos, Luiza diz nem acreditar no carinho. "Não é brincadeira, uma mulher que nem me conhecia ficar 15 dias do meu lado e cuidando de mim." Dos filhos, não tem contato com o mais velho. Um fez uma visita e o mais novo, nunca apareceu. / P.S. e R.B.