Título: Merkel molda a nova UE à sua imagem
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/12/2011, Economia, p. B3

Criticada pela falta de carisma e desenvoltura em público, chanceler alemã ganha força e impõe sua vontade aos países do bloco europeu

Ela cresceu num ambiente austero. Se pai era pastor luterano, justamente no bloco comunista. Os exageros não eram apenas pecado, mas praticamente um crime. Foi nesse contexto que Angela Merkel, chanceler alemã, passou sua juventude e parte de sua vida de adulta.

Nesta semana, foi ela quem deu o tom da nova fase de integração da UE, e seu modelo não poderia ter sido outro: forçar países a ter em suas constituições a exigência por equilíbrio fiscal.

Seus críticos alegam que ela não tem nada de estadista. Não tem carisma e nem desenvoltura para falar em público. Passou meses sem um plano para salvar a Europa, sempre fazendo seus cálculos a partir dos resultados de eleições locais em seu país. Para seus inimigos em todo o continente, Merkel forçou a máquina negociadora até seu extremo.

Mas, ainda assim, ela corre o risco de entrar para a história como a mulher que, em uma madrugada fria de dezembro em Bruxelas, moldou a nova União Europeia à sua imagem.

Merkel já havia entrado para a história como a primeira chanceler da Alemanha. Pode não ter o charme de grandes líderes. Mas não chegou ao cargo por acaso. Depois de viver na Alemanha Oriental 35 de seus 57 anos, a engenheira física mostrou extremo oportunismo político. O ex-chanceler Helmut Kohl precisava de uma mulher, e da parte oriental, para mostrar que seu governo, após a reunificação, era mesmo um governo nacional. A escolhida foi Merkel, que ocupou o ministério de Mulheres e Juventude e depois assumiu o Ministério do Meio Ambiente.

O que Kohl não sabia era que havia trazido para dentro de seu partido sua própria inimiga. Enquanto o partido era assolado por escândalos de corrupção no final dos anos 90, Merkel surpreendeu a todos ao publicar um artigo num jornal alemão alertando que havia chegado o momento para a liderança do partido ser renovada. A Mädchen (a garota, como Kohl a chamava), havia dado seu golpe.

Menos de dez anos depois de sair do bloco comunista, já era a secretária-geral do principal partido alemão e, em 2000, sua líder. Mesmo quando seu cargo estava ameaçado, deu sinais mais uma vez de oportunismo. Costurou alianças com partidos e se manteve na direção do país.

Na cena europeia, ela desperta tanto admiração quanto irritação. Para muitos, pacotes de resgate para a Grécia foram baseados no que o eleitorado em um algum Estado alemão pensava antes da votação, e não na necessidade da Europa. Outros a acusam de ter tentado ganhar tempo por meses, esperando que a crise fosse superada.

Já os mais cínicos acusam Merkel de ter se aproveitado da explosão de incerteza na periferia da Europa. Afinal, investidores foram obrigados a abandonar os papéis da dívida de Itália e Espanha, migrando para os do tesouro alemão. Nas últimas emissões, a Alemanha conseguiu se financiar basicamente de graça.

Ação. Mas a crise chegou a um ponto que mesmo Merkel foi obrigada a agir. Mais uma vez, de forma pragmática e oportunística. Passou a defender sua posição na Europa e passou a ser chamada da Dama de Ferro do século XXI. Mas seu receituário não tem nada de solidariedade. A regra é a disciplina.

No primeiro telegrama para o presidente eleito da Espanha, Mariano Rajoy, no dia da maior vitória dos conservadores em 30 anos, Merkel assustou os políticos espanhóis. Em sua carta, praticamente nada de comemoração. Apenas um pedido: atue rápido para cortar sua dívida.

Na Grécia, esse comportamento já virou alvo de ataques germanofóbicos. Em protestos, não é raro ver a bandeira da UE com as estrelas dos países substituídas por suásticas. Merkel é ainda frequentemente mostrada com um uniforme da SS. Georgios Trangas, um dos principais analistas políticos do país, insiste que a Grécia se transformou "num protetorado alemão".

Até na França, sua atitude despertou um sentimento de mal-estar. Arnaud Montebourg, político socialista, acusou o "nacionalismo alemão de estar voltando na forma de políticas bismarckianas, lideradas por Merkel". O que parte do continente ataca é justamente o receituário de Merkel. Sua ideia para solucionar a crise não passa por equilibrar a relação desigual na Europa. Apenas por equilibrar contas.

Especialistas alertam que isso jamais será obtido se a competitividade das economias da Espanha, Grécia, Itália ou Portugal não for incrementada. Se o atual modelo for mantido, a Alemanha continuará exportando a esses países tudo o que eles precisam, deixando as contas do sul da Europa em um permanente buraco. Merkel é criticada por ter apenas imposto um teto para os gastos, uma receita para fracasso e para promover uma década perdida.

Mas a alemã está convencida de que leva a Europa no caminho certo. Na última semana, declarou a seu parlamento que a Europa havia iniciado uma nova fase da integração. Mas, pragmática, não anunciou que a solução para a crise viria em poucos dias. "O processo levará anos", disse.

Mesmo em seu discurso que poderá entrar para a história como o que apresentou a nova base da Europa, Merkel mostrou total disciplina e sangue frio. Não improvisou uma só linha. Metódica, sua obstinação é lembrada por familiares como sendo uma das suas marcas. Nos anos 70, chegou a ganhar uma bolsa do governo comunista alemão para estudar em Moscou. Afinal, era a melhor estudante de sua escola.

Dá ainda demonstrações de que não esquece de seus princípios. Mesmo sendo chanceler, vive no mesmo apartamento que já ocupava antes, no lado leste de Berlim. Ela garante que faz ainda sua parte em casa. Mas, nas cúpulas de chefe de governo, é seu marido, o químico Joachim Sauer, quem acompanha a programação destinada às "primeiras-damas" de cada país.

Afinal, Joachim sabe que sua mulher é provavelmente hoje a pessoa mais importante do mundo. Se seu plano funcionar, será a líder que terá salvado o euro, a estabilidade mundial e o projeto de integração de mais de meio século. Se fracassar, entrará para a história como o símbolo de uma geração da classe política europeia que não teve a capacidade de fazer concessões e liderar um resgate.