Título: É o fim ou o começo no Egito?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 09/12/2011, Internacional, p. A18

Pelo fato de os regimes militares terem dizimado os partidos seculares, há pouca chance de um país árabe passar para a democracia sem um governo religioso

O fato de a Irmandade Muçulmana e o Partido Al-Nur - salafista e ainda mais radical - terem obtido cerca de 65% dos votos na rodada inicial das eleições parlamentares livres do Egito - o primeiro pleito realizado após a deposição do presidente Hosni Mubarak - não surpreende. Levando-se em consideração o modo como os regimes militares no mundo árabe dizimaram todos os partidos políticos seculares e independentes nos últimos 50 anos, é pequena a probabilidade de algum país árabe passar de Mubarak a Jefferson sem tropeçar num tipo de Khomeini em algum momento.

Mas ainda não sabemos se esse é o fim da rebelião democrática egípcia, apenas uma fase dela ou uma inevitável expressão política religiosa que terá de coexistir com a pauta de reformas do Exército e da sociedade secular. As leis da gravidade, tanto políticas quanto econômicas, ainda não definiram com sua influência quem será a liderança no Egito, motivo pelo qual estou hoje em modo de observação, com mais perguntas do que respostas.

Lição. Primeira pergunta: será que os partidos reformistas mais seculares, que lideraram as revoluções na Praça Tahrir no início do ano e no mês passado, aprenderam com seus próprio erros? De acordo com uma pesquisa de opinião realizada pela Charney Research para o Instituto Internacional da Paz, quando os egípcios foram indagados no mês passado se os protestos na praça eram necessários para atingir as metas da revolução ou se os distúrbios foram desnecessários "num momento em que o Egito precisa de estabilidade e recuperação econômica", 35% a 53% dos participantes disseram preferir que o foco fosse mantido na recuperação econômica.

Os mais seculares dentre os manifestantes reformistas pró-democracia, que reviveram os protestos da Praça Tahrir no mês passado, merecem crédito por terem feito com que o Exército do Egito limitasse sua tentativa de manter o controle do governo. Mas isso parece ter sido conquistado com o afastamento de parte do eleitorado mais tradicional - que ainda se atém ao Exército como fonte de estabilidade -, aparentemente prejudicando também a preparação dos reformistas seculares para concorrer na primeira rodada das eleições. O liberal Bloco Egípcio ficou em terceiro lugar, com cerca de 15% dos votos. Os reformistas seculares do Egito precisam se tornar mais organizados e unidos.

Segunda pergunta: será que os partidos islâmicos egípcios, que podem vir a dominar um futuro gabinete, têm ideia de como produzir crescimento econômico num momento em que a economia egípcia está afundando? Hoje, o Egito está torrando cerca de US$ 1 bilhão em reservas de moeda estrangeira a cada mês e já perdeu US$ 21 bilhões até agora. A libra egípcia desmoronou, atingindo seu valor mais baixo em sete anos. O desemprego entre os jovens é de 25%. No país, a principal fonte de moeda estrangeira é o turismo, que trouxe US$ 39 bilhões no ano passado. Hoje, a taxa de ocupação dos hotéis está muito abaixo do normal.

Mas o principal foco dos salafistas não está nas melhorias econômicas.

Seu objetivo é a segregação dos gêneros, a proibição ao álcool e a garantia de que as mulheres circulem sob véus. A Irmandade Muçulmana tem sido menos doutrinária, mas está longe de ser liberal. Como poderá ela fazer avançar seus costumes religiosos e sociais quando isso pode afastar a maior fonte de renda do Egito, para não falar no investimento estrangeiro direto e na assistência externa oferecida pela União Europeia e pelos EUA?

Não sei a resposta. Sei apenas que um dos principais motivos pelos quais as forças do aiatolá Khomeini puderam se manter no poder durante tanto tempo no Irã foi o fato de os aiatolás contarem com uma imensa e inesgotável fonte de renda nas reservas de petróleo, usadas para comprar a lealdade da população e ignorar o restante do mundo. Ainda assim, enfrentaram uma revolta popular.

O Egito não conta com recursos desse tipo. Sua única esperança de crescimento ainda é o capitalismo de livre mercado - capaz de criar empresas e trabalhadores que possam concorrer no mercado global. Assim sendo, aquele que herdar o poder no Egito terá de produzir uma forma menos corrupta de capitalismo, com mais concorrência, mais privatização e menos empregos no funcionalismo público, num momento em que a economia egípcia está afundando.

Coesão. Como disse à Associated Press Mohamed ElBaradei, líder reformista egípcio e ganhador do Prêmio Nobel da Paz: "Acho que a Irmandade, em especial, e alguns dos salafistas deveriam divulgar rápidas mensagens de esclarecimento dentro e fora do país para garantir que nossa sociedade se mantenha coesa e o investimento chegue ao Egito".

Terceira pergunta: será que o Egito vai seguir o padrão do Iraque? As primeiras eleições iraquianas também foram dominadas por partidos religiosos e sectários e, depois que estes apresentaram um péssimo desempenho no governo, o público iraquiano voltou-se para partidos mais seculares e pluralistas.

Os eleitores árabes querem um governo honesto que crie empregos e proporcione estabilidade. O Iraque demonstra também que, quando os combates chegam ao fim e a política tem início, todas as articulações tornam-se possíveis entre partidos seculares e religiosos. A Irmandade Muçulmana e os salafistas são arqui-inimigos - não há nada como um cisma dentro da fé - e, assim sendo, ninguém sabe que tipo de coalizão poderá emergir.

Resumo: a Irmandade Muçulmana e os salafistas têm agido nos bastidores, concentrados principalmente naquilo que ambos combatem e confinados a sua ideologia de platitudes como "o Islã é a resposta". Agora que estão emergindo do porão árabe e chegando às ruas, eles precisam definir aquilo que defendem - e têm de fazê-lo no contexto de uma economia global altamente competitiva que vai deixar cada vez mais para trás os 85 milhões de egípcios, dos quais um terço é composto por analfabetos, a não ser que estes comecem a se mexer.

Para isso, será necessário que salafistas e Irmandade Muçulmana façam duros ajustes em sua ideologia, adaptando-a à realidade. Essa história está apenas começando. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL