Título: Funai e meio ambiente
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2012, Espaço aberto, p. A2

A Funai, no dia 12 de janeiro, publicou, no Diário Oficial da União, a Instrução Normativa nº 1, que versa sobre novas prerrogativas desse órgão nos processos de licenciamento ambiental de terras indígenas e de seu entorno. Mais precisamente, ela se autoinstitui como órgão licenciador para novos empreendimentos, avançando sobre as atribuições do próprio Ibama.

O momento de edição dessa Instrução Normativa não deixa de ser revelador, pois ocorre quando a Câmara dos Deputados vai reanalisar o novo Código Florestal. É como se ela já se contrapusesse à nova lei antecipadamente, desconsiderando, assim, todo o trabalho desenvolvido na Câmara e no Senado. Seria tentado a dizer que estamos diante de um abuso "legislativo", que se faz por mero ato administrativo, contrapondo-se a leis verdadeiramente ditas, elaboradas e aprovadas no Congresso.

Em um primeiro momento, poder-se-ia ter a impressão de que a Funai estaria simplesmente agindo segundo suas competências, normatizando a questão ambiental dentro das terras indígenas. As aparências, porém, enganam, como se diz em linguagem popular.

Nos Artigos 1º e 2º , em seu inciso I, fica manifesto que a atividade da Funai "no processo de licenciamento ambiental de empreendimentos causadores de impactos ambientais e socioculturais a terras e povos indígenas" diz respeito a "terras indígenas ou em seu entorno". O problema reside, então, no "entorno", termo vago e impreciso.

No Artigo 9º, parágrafo 1, há ainda uma precisão importante, pois é dito que terras indígenas incluem "áreas em revisão de limites ou com reivindicações previamente qualificadas quanto à tradicionalidade da ocupação".

Terras indígenas "e em seu entorno" podem incluir, na verdade, qualquer extensão que um antropólogo e equipe considerarem como necessária à "reprodução física e cultural" das etnias em questão, o que tanto pode incluir alguns poucos como dezenas de quilômetros. Não se pode esquecer que qualquer demarcação de terras indígenas, para a Funai, diz respeito a milhares de hectares.

Uma empresa envolvida em um processo desse tipo torna-se, portanto, refém de qualquer tipo de arbitrariedade antropológico-administrativa, ficando a mercê de processos que se estenderiam certamente por anos. Em áreas próximas a áreas indígenas, passaria a Funai a agir como órgão licenciador, avançando sobre as funções do Ibama e dos órgãos ambientais estaduais.

Para além do problema do entorno, apresenta-se, ainda, outra questão da maior relevância, a de que terras indígenas incluem terras em processo de identificação e demarcação, assim como de "revisão de limites". Ou seja, qualquer terra que estiver em processo preparatório e preliminar de estudos de identificação e demarcação deverá ser objeto de um estudo ambiental controlado pela Funai, que visa a impedir que empreendimentos sejam feitos nessa área.

O absurdo chega às raias da inconstitucionalidade quando a Instrução Normativa estipula que terra indígena inclui "revisão de limites", eufemismo para burlar a determinação do Supremo, quando do julgamento da Raposa Serra do Sol, que veda a ampliação de terras indígenas. A Funai, por ato administrativo, desconsidera, com efeito, a decisão do STF!

Há um componente que poderíamos chamar de governo X governo nessa Instrução Normativa, como se o próprio PAC, por exemplo, devesse ser solapado. Se essa Instrução for efetivamente aplicada, empreendimentos como o de Belo Monte serão inviabilizados. Todo o projeto de construção de hidrelétricas, sobretudo na região amazônica, será literalmente paralisado, senão inviabilizado.

Ressalte-se que a Instrução Normativa vale para todo o país e não apenas para a região amazônica. Considere-se que, aproximadamente, 13,5% do território nacional são constituídos de terras indígenas, equivalentes a em torno de 110 milhões de hectares. Considere-se, igualmente, que a Funai pensa aumentar significativamente esse número com novos processos de identificação e demarcação e ampliações.

O resultado desse processo só poderá ser um prejuízo incalculável para novos empreendimentos, tanto nos setores da agropecuária e agronegócio, quanto na construção civil, estradas, hidrelétricas e mineração. Note-se que não apenas empresas privadas serão prejudicadas como, também, grandes empreendimentos estatais.

Em seu Artigo 4º, parágrafo 2º, a Funai poderá "receber petições e solicitações de acompanhamento de empreendimentos ou atividades potencial e efetivamente causadoras de impactos ambientais e socioculturais a terras e povos indígenas assinados por: a) comunidades indígenas; b) organizações indígenas; c) organizações constituídas legalmente no Brasil cujo objetivo social tenha pertinência com a defesa dos povos indígenas ou a proteção do meio ambiente; d) órgãos licenciadores; e) Ministério Público Federal; f) demais interessados".

Atente-se para os itens B e C, que inevitavelmente estabelecerão como partes o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e ONGs, tanto nacionais quanto internacionais, sediadas no país. Abre-se um enorme espaço de atuação administrativa e política para esses ditos movimentos sociais e ONGs. A politização ideológica fecha, então, esse quadro.

A participação das comunidades indígenas potencialmente afetadas se fará durante toda a tramitação do processo, passando elas a opinar e, mesmo, decidir sobre a criação de um novo empreendimento público ou privado, não apenas em seu território próprio, como lhe é constitucionalmente assegurado, mas, também, em seu "entorno", o que é uma arbitrariedade.

Nesse contexto, a última palavra em todo empreendimento terminará nas mãos de comunidades e entidades indígenas, através de suas organizações, movimentos sociais e ONGs, nacionais e internacionais. O mais sensato a ser feito pelo Ministério da Justiça seria a pura e simples revogação dessa Instrução Normativa, sob pena de acirramento de conflitos e paralisia econômica.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.