Título: Ordem da Justiça causa incerteza na Venezuela
Autor: Santanna, Lourival
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2012, Internacional, p. A17

Traumatizados por uma lista negra espalhada em 2004, eleitores votaram nas primárias com base na promessa de que as atas seriam queimadas

A Justiça venezuelana está tentando forçar a oposição a entregar-lhe a lista dos 3 milhões de eleitores que votaram nas primárias de domingo. A participação nas primárias, que escolheram o candidato único da oposição à presidência, a governadores e prefeitos - um total de 288 cargos - foi um desafio aberto ao presidente Hugo Chávez, no poder há 13 anos, que disputará a reeleição em outubro.

Policiais entraram em choque com militantes oposicionistas em várias centrais de apuração de votos no país, tentando cumprir o mandado do Tribunal Supremo de Justiça, de confiscar as atas, com base numa ação de Rafael Velásquez, pré-candidato a prefeito do pequeno município de Bruzual, no Estado de Yaracuy. As regras previam que as queixas fossem apresentadas à Comissão Eleitoral da Mesa da Unidade Democrática (MUD), responsável pela realização das primárias. Mas Velásquez recorreu diretamente ao Tribunal, numa atitude que levantou suspeitas entre os oposicionistas.

Muitos desses 3 milhões de eleitores só saíram para votar por causa das garantias da MUD, a frente oposicionista, de que as listas de votação seriam queimadas 48 horas depois do fechamento das urnas, e de dirimidos os questionamentos sobre a contagem dos votos. Os cinco candidatos e líderes importantes da oposição foram à TV exortar os eleitores a votar, oferecendo precisamente essa garantia.

Os venezuelanos têm uma experiência traumática com listas de eleitores. Entre 28 de novembro e 1.º de dezembro de 2003, com base na Constituição promulgada por Chávez em 1999, os partidos oposicionistas e o movimento de defesa das liberdades civis Súmate promoveram um abaixo-assinado para a convocação de um referendo revogatório do mandato do presidente. Em março do ano seguinte, o deputado chavista Luis Tascón publicou em sua página na internet os nomes dos eleitores que participaram do abaixo-assinado.

Quatro meses depois, começou a circular na internet o arquivo completo do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), com a ficha de todos os 12.394.109 eleitores à época, o número de sua cédula de identidade, seu endereço residencial e a frase, no cabeçalho: "Sim, assinou contra o presidente", com uma tarja azul, ou "Não assinou contra o presidente", com tarja vermelha.

O software baixado junto com o arquivo para lê-lo era chamado de "Maisanta" - lembrando o Comando Maisanta, o nome dado à campanha chavista contra a revogação de seu mandato. A lista entrou para a história com o nome Tascón-Maisanta. Grande número de funcionários públicos perdeu o emprego por ter aparecido nessa lista como tendo votado "contra o presidente". A obtenção de créditos nos bancos estatais, de benefícios nos programas sociais e até mesmo de passaportes e outros documentos oficiais passou a depender da consulta à lista. Os venezuelanos usam a mesma palavra dos anos de chumbo no Brasil: "fichados".

A ordem de entregar a Tascón as atas do abaixo-assinado depositadas pela oposição no CNE foi dada em memorando assinado por Chávez em 30 de janeiro de 2004, dirigido ao então presidente do órgão, Francisco Carrasquero. A Lista Tascón-Maisanta produziu enorme insegurança na Venezuela, fez crescer a subserviência perante o regime e minou a resistência da oposição. Em 2005, os oposicionistas boicotaram as eleições para o Parlamento, por considerar que não havia garantias suficientes de que o sigilo do voto eletrônico era inviolável. O boicote resultou numa Assembleia Nacional totalmente dominada por Chávez.

A oposição vinha se reerguendo aos poucos. Em 2010, venceu por 51% a 49% dos votos as eleições para a Assembleia, e só não conquistou maioria por causa do peso proporcional de cada Estado. As primárias de domingo representaram mais um passo na consolidação dessa nova oposição, liderada por políticos jovens, de linhas ideológicas muito diferentes, mas unidos pelo propósito comum de desbancar Chávez.

Agora, a pressão do Tribunal Supremo, mesmo que inócua na prática, se as atas tiverem mesmo sido queimadas, cumpre no entanto o objetivo de semear a insegurança entre os eleitores que não gostam de Chávez: será prudente contrariar o presidente?