Título: Reformas põem a fechada Mianmar no rumo da democracia
Autor: Trevisan, Claúdia
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2012, Internacional, p. A16/17

Governo adota leis que se destinam a romper com décadas de regime de exceção 12 de fevereiro de 2012 | 3h 05

Quando Aung San Suu Kyi foi libertada de sua prisão domiciliar em 13 de novembro de 2010, ninguém imaginava que pouco mais de um ano depois ela estaria percorrendo o país em carro aberto, falando a multidões e pedindo votos na campanha para a primeira eleição que seu partido disputa em duas décadas. Na tentativa anterior, em 1990, a líder oposicionista conduziu a Liga Nacional pela Democracia (LND) a uma vitória avassaladora, cujo resultado foi ignorado por uma das mais brutais, corruptas e longevas ditaduras militares do mundo.

O ativismo político de "mãe Suu", como ela é chamada pelos jovens, é o mais evidente sinal de uma vertiginosa sucessão de reformas iniciadas há um ano, com a instalação do Parlamento eleito em 2010 e a posse de um governo nominalmente civil, formado por ex-integrantes da junta militar.

Para surpresa de muitos dentro e fora de Mianmar, o presidente Thein Sein e seus ex-colegas de quartel transformados em ministros e parlamentares aprovaram uma série de leis que podem colocar o país no caminho da normalização institucional. Entre elas, uma que autoriza manifestações pacíficas e outra que permite a sindicalização dos trabalhadores e reconhece o direito de greve.

A censura foi drasticamente reduzida e fotos de Suu Kyi passaram a estampar as primeiras páginas dos jornais, algo impensável há poucos meses. Sites de notícias criados por exilados políticos deixaram de ser bloqueados. Facebook, Twitter e YouTube passaram a ser acessados livremente.

Duas grandes anistias libertaram cerca de 850 presos políticos e uma Comissão Nacional de Direitos Humanos foi instalada para apurar violações e fazer recomendações ao governo. Sua independência é questionada, mas a mera existência da comissão tem peso simbólico em um país que ignorava as denúncias de violação - que punham Mianmar entre os últimos colocados nesse quesito em relatórios de organismos internacionais. "Nós raramente falávamos em direitos humanos no passado. Agora, estamos falando de sua proteção e promoção", afirma Win Mra, presidente da comissão, que refuta a acusação da ONU de que há violações "persistentes e sistemáticas" de direitos humanos.

"A velocidade e a amplitude das reformas surpreenderam a todos", ressalta Steve Marshall, que há cinco anos é representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no país. Superado o ceticismo inicial em relação à determinação do governo em seguir com as transformações, Suu Kyi viajou à nova capital Naypyidaw em agosto e teve um encontro reservado com Thein Sein. Presa em sua casa em Rangum durante 15 dos últimos 20 anos, foi a primeira vez em que ela viajou à cidade inaugurada pelos militares em 2005. Semanas mais tarde, a líder oposicionista mudou sua posição em relação às eleições e decidiu que seu partido vai disputar as 48 das 664 cadeiras do Parlamento que ficaram vagas depois da formação do gabinete, no ano passado. A LND boicotou a votação de 7 de novembro de 2010, que teve participação de outras legendas de oposição.

'Florescente e disciplinada'. Analistas internacionais e ativistas viram indícios de fraude na votação, na qual o oficial Partido do Desenvolvimento e da União Solidária obteve 76% das cadeiras. Com ampla maioria, os militares puderam formar o governo e escolher o novo presidente, em um sistema de eleição indireta. A próxima chance de a LND obter maioria no Parlamento virá nas eleições gerais previstas para 2015.

O equivalente em Mianmar da "abertura lenta, gradual e irrestrita" brasileira é a "democracia florescente e disciplinada". A grande pergunta - para a qual parece haver múltiplas respostas - é por que os militares resolveram acelerar a transição agora.

"Não podíamos continuar como estávamos", diz Ko Ko Hlaing, assessor do presidente Thein Sein. Em meados do século passado, Mianmar era o maior exportador de arroz do mundo e apresentava indicadores socioeconômicos superiores aos da maioria de seus vizinhos do Sudeste Asiático. Hoje, está entre os mais pobres e corre o risco de ser ultrapassado pelos paupérrimos Laos e Camboja, observa Carlos Veloso, representante em Rangum do Programa Mundial de Alimentos, ligado à ONU.

Para muitos, as reformas são uma estratégia de sobrevivência dos militares, que buscam uma transição controlada, dentro de um sistema que garanta sua influência e os proteja de eventual revanchismo de dirigentes civis ou de novos ditadores. Segundo Ko Ko Hlaing, há "consenso" dentro do governo em conduzir o país à democratização. "A Primavera Árabe foi uma mudança de baixo para cima. A nossa é de cima para baixo."

Os inúmeros rumores que circulam em Rangum, entretanto, apontam para divisões entre os militares e a insatisfação dos "linha-dura" com o rumo das transformações. "Quanto mais mudanças os reformistas fizerem e mais rapidamente as aprovarem, mais eles deixarão os linha-dura para trás. Claro que há riscos. Se eles cometerem um grande erro ou as reformas não forem bem-sucedidas, o grupo linha-dura pode reagir", ressalta Khin Zaw Win, ativista independente que ficou preso de 1994 a 2005 em razão de sua atuação na denúncia de violações cometidas contra minorias étnicas e na repressão dos protestos pró-democracia de 1988, quando cerca de 3 mil pessoas foram mortas.

Apesar das atrocidades cometidas pelos militares nos últimos 50 anos, todos os ativistas e opositores entrevistados pelo Estado dizem que não buscam revanchismo e são favoráveis a um processo de reconciliação com ênfase no futuro, não a um acerto de contas com o passado. "Não queremos vingança e estamos dispostos a fazer concessões para que a situação do país melhore", diz o músico Win Mao, de 49 anos, que passou 10 dos últimos 16 anos na prisão e foi libertado na anistia de 12 de janeiro.