Título: Do deserto chileno, astrônomos estudam o DNA das estrelas
Autor: Escobar, Herton
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2012, Vida, p. A24

Cada minuto de uso dos disputados telescópios nos Andes tem alto valor científico

Com alguns cliques do mouse, entre um gole e outro de chimarrão, o astrônomo Alvaro Alvarez dá as coordenadas para que o telescópio UT-2, instalado a 2,6 mil metros de altitude nos Andes chilenos, aponte para o objeto NGC 2264, uma aglomerado de estrelas a 2,6 mil anos-luz da Terra, na constelação de Unicórnio. Em poucos minutos, uma imagem do aglomerado aparece na tela, à medida que as partículas de luz que viajaram 2,6 mil anos no espaço são refletidas pelo espelho do telescópio e redirecionadas para um instrumento capaz de separar a luz de mais uma centena de estrelas em fibras óticas individuais, simultaneamente.

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DivulgaçãoVista do complexo de telescópios do Observatório Paranal, do ESO, nos Andes chilenos

Um relógio na sala de controle marca 1 hora da madrugada no horário de verão do Chile, 4h no Tempo Universal Coordenado (UTC) e 7h02 no Tempo Sideral, uma espécie de "fuso horário" das estrelas. A observação do aglomerado, encomendada por uma astrônoma brasileira, está prevista para durar uma hora. Nesse meio tempo, Alvarez pode tomar seu chimarrão tranquilo; o telescópio faz quase tudo sozinho. Uma campainha avisa quando a observação terminou e é hora de começar outra. Nesse momento, a transição tem de ser rápida, pois a noite é curta. Cada minuto de uso do telescópio tem um valor científico inestimável, disputado com enorme expectativa por astrônomos do mundo todo.

O UT-2 é um dos quatro telescópios de 8 metros que compõem o sistema do Very Large Telescope (VLT), no Observatório de Paranal, considerado o mais avançado centro de observações astronômicas do planeta. Um conjunto de cúpulas prateadas, recheadas com a mais alta tecnologia, construídas sob um domo impecável de estrelas em meio ao ar excepcionalmente limpo e seco do Deserto de Atacama. A demanda de tempo para uso dos telescópios é três vezes maior do que a quantidade de horas disponível, mesmo com o observatório funcionando do poente ao nascer do Sol, 365 noites por ano. Dos cerca de 1 mil projetos submetidos por semestre ao VLT, só 300 conseguem entrar na fila de observação, após um processo seletivo baseado em mérito científico.

O estudo da pesquisadora brasileira foi um deles. Alvarez não pode revelar o nome da cientista nem detalhes do projeto, por questões de sigilo. O instrumento usado na observação, chamado Flames, é um espectrógrafo que funciona como uma peneira de luz conectada a fibras óticas, que podem ser posicionadas com precisão micrométrica para capturar a luz de estrelas. O que permite deduzir uma série de informações sobre essas estrelas e sobre o aglomerado como um todo. "O espectro é como um DNA da estrela", explica Alvarez. "Ele nos diz que tipo de estrela é, sua composição, idade, temperatura."

Cada telescópio do VLT está equipado com diferentes instrumentos, projetados para estudar a luz das estrelas - ou de galáxias, nuvens de gases ou qualquer outro objeto - de diferentes maneiras. Todos controlados de uma mesma sala, digitalmente. Alvarez, um astrônomo argentino de 34 anos, monitora os três instrumentos e gerencia a fila de observações do UT-2, enquanto sua colega, Karla Aubel, controla os movimentos do telescópio. Outras duplas fazem o mesmo para os outros telescópios.

Luz. Paranal é apenas um dos três centros de observação do Observatório Europeu do Sul (ESO, em inglês), um consórcio de 14 países ao qual o Brasil pretende se juntar em breve (mais informações nesta página). A organização, por enquanto, é 100% europeia, mas os observatórios ficam no Chile por causa das condições atmosféricas, climáticas e geográficas únicas da região. O ar limpo e seco do Deserto do Atacama, combinado com a altitude dos Andes (que reduz a espessura e a densidade da camada de atmosfera que a luz precisa atravessar para chegar aos telescópios) e o isolamento geográfico (que reduz a poluição luminosa), transformam a paisagem do norte chileno em um oásis para a astronomia mundial.

Ao norte de Paranal, em condições ainda mais inóspitas, fica o observatório Alma, um conjunto de antenas supersofisticadas, feitas para observar ondas de luz em frequências milimétricas e submilimétricas, na faixa do infravermelho ao rádio (invisíveis para o olho humano). O projeto, orçado em 1 bilhão, prevê a instalação de 66 antenas, que poderão funcionar simultaneamente como se fossem um único telescópio gigantesco, de até 15 quilômetros de diâmetro. Dezesseis já estão em operação, produzindo, cada uma, 96 gigabites de informação por segundo, 24 horas por dia.

As antenas, com 20 metros de altura e pesando 100 toneladas cada uma, parecem saídas de um filme da série Guerra nas Estrelas. Uma impressão realçada pela aparência "extraterrestre" do Altiplano de Chajnandor, a 5 mil metros de altitude, que poderia se passar por um deserto marciano. "Não há lugar melhor no mundo para radioastronomia", vibra a astrônoma Alison Peck, diretora de projetos científicos do Alma.

Apesar do tamanho, as antenas são móveis, podendo formar diferentes configurações. Assim, os cientistas podem optar por colocá-las bem separadas, para focar em objetos específicos, ou colocá-las mais próximas umas das outras, para ampliar o campo de visão e enxergar mais longe - como se faz com as lentes de uma câmera fotográfica.

A vantagem da radiação submilimétrica é que ela não é bloqueada pelos gases e poeira do meio interestelar, como a luz visível, permitindo, ironicamente, que os astrônomos enxerguem mais coisas com os radiotelescópios do que com os próprios olhos. As principais aplicações do Alma serão no estudo da formação de estrelas, planetas e galáxias, que ocorrem em meio a gás e muita poeira.

Interessados em respirar o ar seco do deserto para isso não faltam. Mas falta tempo para tanto interesse. Cerca de 900 projetos de pesquisa já foram submetidos ao Alma para 2012. Mas só 100 poderão ser escolhidos.