Título: Mutilados por regime sírio juram vingança
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/02/2012, Internacional, p. A14/15

Vítimas da repressão de Assad dizem estar prontas para lutar contra ditador

Eles são universitários, pedreiros, crianças, rebeldes ou simples idosos cansados de ver seus netos e filhos morrerem. Cada um tem sua cicatriz e sua história. Todos, porém, compartilham a mesma realidade: foram vítimas da crueldade do regime de Bashar Assad.

A reportagem do Estado visitou um núcleo da oposição síria - situado clandestinamente na fronteira entre a Jordânia e a Síria -, hospitais improvisados e centros de acolhimento da ONU e ouviu inúmeras histórias de pessoas que sofreram torturas medievais, violações sexuais e tiveram suas mãos e pés cortados pelo regime.

Muitos, ao serem alvo da repressão, nem sequer faziam parte de grupos armados de oposição. Hoje, não hesitam em declarar que, uma vez curados, voltarão à batalha e estarão prontos para lutar ao lado do Exército de Libertação Sírio.

Os crimes de Assad já foram denunciados pela ONU e ativistas de direitos humanos, que apontam que o número de mortes já passou de 7 mil - apenas ontem, 76 morreram nos confrontos. Mas os relatos colhidos pela reportagem revelam que a repressão não se limita ao assassinato de pessoas envolvidas com os rebeldes e escancaram uma verdadeira máquina de tortura estabelecida há quase um ano que não dá sinais de ceder. De Ramtha, na Jordânia, as vítimas que conseguiram fugir para serem tratadas escutam rajadas de metralhadoras em Deraa. A cidade que deu início ao conflito na Síria em março de 2011 está a menos de 30 minutos de caminhada.

Marhaf era pintor em obras em Deraa e não esconde que decidiu sair às ruas para protestar só vários meses depois que os tumultos começaram. "Não suportei ver o que ocorria com os cidadãos comuns", diz. No fim do ano passado, ao ajudar a recuperar corpos nas ruas, Marhaf foi atingido por uma bala e perdeu a mão. "Há um massacre ocorrendo na Síria e só ficará pior. Famílias começam a se armar, se unir a grupos armados para defender suas mulheres e crianças", diz o sírio, que prefere não dar seu sobrenome temendo que o regime saia em busca de sua família em Deraa.

Marhaf afirma que a cena que jamais se esquecerá é de um de seus primos que foi atingido por um foguete lançado por um tanque. "Quando viram que ele ainda se mexia, os soldados deram meia-volta com o tanque e passaram três vezes por cima de seu corpo", afirma. "Obviamente, quando fomos resgatá-lo, já estava morto."

Bassam Nohi, veterinário, é outro exemplo de um civil sem filiações políticas que acabou torturado e hoje está na lista de traidores do regime. Nohi foi preso em novembro em Deraa e teve seus olhos cobertos por seis dias. "A cada hora, eu era espancado nos meus olhos", conta. Quando retiraram a faixa sobre seus olhos, levou mais dois dias para voltar a ver. "Achei que havia ficado cego."

Medo. Samir, que também teme pela vida de seus pais e se recusa a dar seu sobrenome, é outro que conseguiu fugir para se tratar. O jovem universitário desafiava o regime não com armas, mas tirando fotos com seu celular de um ataque do regime na cidade de Deraa quando um atirador de elite atingiu sua mão e conseguiu leva-lo à prisão em agosto. "Só sobraram dois dedos", diz.

Samir afirma que viu de tudo na prisão. "O cheiro era insuportável. Os corpos das pessoas que morriam espancadas eram recolocados nas celas onde apodreciam." Ele diz que dividiu uma cela de 8 metros quadrados com outros 25 detentos. "Duas vezes por dia, éramos suspensos pelas mãos como sacos de cimento e deixados nessa posição por horas."

Abuso infantil. Privados de ar puro, higiene e alimentação, Samir conta que os mais fragilizados não aguentavam e morriam dias depois de chegar ao local. "O que mais revoltava as pessoas que eram presas é que descobríamos crianças de menos de 10 anos nas mesmas celas. Chegávamos a questionar os soldados e a resposta era de que não queriam a formação de uma nova geração de rebeldes no país", diz Samir.

Outro sobrevivente confirma a existência de crianças nas prisões. "Muitas são capturadas na saída das escolas e chegam às prisões com seus cadernos, lápis e mochilas", afirma o sobrevivente, que pede para não ter o nome revelado. Dados do Alto-Comissariado da ONU para Refugiados apontam que, em janeiro, pelo menos 400 crianças estavam nas prisões sírias.

Os relatos dos sobreviventes demonstram que não é necessário ir até as prisões para ver a tortura. Zaher Hariri, outro ex-morador de Deraa e estudante de literatura árabe na universidade local, foi atingido por uma bomba em 27 de novembro. Ele foi atendido em um hospital de sua região onde informaram que ele tinha grandes chances de salvar sua mão.

"Fui transferido para o hospital nacional em Damasco", afirma. "Mas assim que cheguei, fui anestesiado e, quando acordei no dia seguinte, não tinha mais metade do braço", revela. "Fui punido pelos médicos por ter feito parte dos protestos."

Ao ver que estava sendo vigiado, Hariri escapou do hospital, mas dois de seus irmãos estão desaparecidos e outro fugiu para o Kuwait. "Não há nem mais lágrimas para minha mãe chorar", diz. "Viver desta forma não faz mais sentido", afirma. Assim que conseguir uma prótese, voltará à Síria. "Preciso fazer minha parte."